Quem está a fim de ideias afins?
O recente relançamento, pela editora Lexikon, do “Dicionário analógico da língua portuguesa”, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, é uma excelente notícia que, ainda assim, me provocou secretamente alguns pensamentos graves, até sombrios. Clássico entre os dicionários brasileiros do gênero analógico – também chamado de thesaurus ou de ideias afins –, o livro, lançado em […]
O recente relançamento, pela editora Lexikon, do “Dicionário analógico da língua portuguesa”, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, é uma excelente notícia que, ainda assim, me provocou secretamente alguns pensamentos graves, até sombrios. Clássico entre os dicionários brasileiros do gênero analógico – também chamado de thesaurus ou de ideias afins –, o livro, lançado em 1950, andava esgotado até em sebos, sem que nenhum outro título lhe tivesse tomado o lugar em nosso mercado editorial. A própria ideia de dicionário analógico parece ter entrado em declínio, vindo a morrer (ou hibernar?) sem que o público sequer se desse conta disso.
Para quem não sabe – e muita gente hoje não faz a menor ideia –, um dicionário analógico é uma espécie muito particular de livro, que propõe uma relação peculiar entre as palavras e delas com o leitor. Nele, em vez de serem apresentadas em ordem alfabética e sumariamente definidas, como num dicionário comum, as palavras são agrupadas por afinidades, por campo semântico, por vizinhança, por oposição: palavra puxa palavra. Cada um desses grupos – ao qual o leitor chega folheando o volume a esmo ou, se souber o que procura, por meio de um índice alfabético na parte final – lança pontes muitas vezes inesperadas e dialoga animadamente com outras colônias de palavras, concordando, discordando, ampliando sentidos, listando expressões consagradas, abrindo ângulos novos. Uma festança para logomaníacos, poetas e escritores que, como Gustave Flaubert, estejam em busca da mítica palavra justa. Certo?
Aí é que está. No prefácio da edição da Lexikon, Chico Buarque confessa que o livro de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, que ganhou do presente do pai, o ajudou “no acabamento de romances e letras de canções”. Mas será que Chico não é um dos últimos de uma linhagem, num momento histórico em que que a visão de linguagem – e de mundo – proposta pelos dicionários analógicos goza de prestígio cada vez mais diminuto, mesmo entre gente de letras? Isso explicaria o gênero ter sumido das livrarias por tanto tempo. É só um palpite, um chute leviano de cronista dominical, mas ando incomodado com a impressão de que, ao dar ao leitor instrumentos para navegar pelo oceano das palavras sem se preocupar com a terra firme das definições, da referência ao “mundo concreto”, os dicionários analógicos celebram e estimulam uma certa autonomia da linguagem que, como o verso metrificado, pode muito bem ser repulsiva à pragmática sensibilidade contemporânea, cada vez mais pautada naquele bordão de programa humorístico: “Entendeu? Então não complica”.
Tomara que eu esteja errado.