Propina: como uma palavra inocente se afunda no crime
Propina, nos dicionários brasileiros, é palavra leve. Sinônimo de gorjeta, aquilo que se paga a mais por um serviço prestado satisfatoriamente, não é – a julgar pelo que garantem os lexicógrafos – exatamente o mesmo que suborno. Ah, é? Então por que será que a imprensa vem chamando de propina aquilo que dois PMs cariocas […]
Propina, nos dicionários brasileiros, é palavra leve. Sinônimo de gorjeta, aquilo que se paga a mais por um serviço prestado satisfatoriamente, não é – a julgar pelo que garantem os lexicógrafos – exatamente o mesmo que suborno. Ah, é? Então por que será que a imprensa vem chamando de propina aquilo que dois PMs cariocas exigiram de um homicida de trânsito para deixá-lo ir embora, como se estivessem no máximo quebrando o galho de um motorista distraído que não sabia estar com uma lanterna queimada?
Como foi que nós viemos parar aqui?
O certo é que nasceu inocente a propina, na expressão grega Tibi propino, que acompanhava os brindes com que um anfitrião saudava seu convidado – “Bebo à sua saúde!” – antes de dar um gole e lhe passar o copo. Prova de generosidade, sim, mas também voto de confiança e intimidade.
Passou com sentido semelhante ao latim propina e daí, já no século 17, ao português, mas agora com uma importante ampliação de sentido. Não mais restrita à mesa, aos comes e bebes, a propina era assim registrada no início do século 18 por Rafael Bluteau, o primeiro dicionarista de nossa língua:
Hoje se dá propina em dinheiro, ou em tantas varas de pano, e outras coisas usuais.
Bluteau ainda não falava de corrupção, não como a entendemos hoje, mas a prática de azeitamento das engrenagens burocráticas a que ele se refere é seguramente uma ancestral de nossas mazelas:
…em Portugal se dão propinas aos oficiais da Casa Real, aos tribunais, ao reitor, chanceler, lentes, licenciados, bedéis etc. da universidade.
Foi daí que saiu, por um lado, o sentido moderno de propina na terra de José Saramago, já oficial e expurgado de qualquer conotação escusa: “Quantia que se paga ao Estado a fim de se poderem realizar matrículas, exames ou outros actos escolares” (Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa).
Mas foi daí que saiu também, pelo lado oposto, o sentido moderno de propina no Brasil, extraoficial e tão carregado de conotações escusas que deveria nos levar – dicionaristas e todo mundo – a fazer uma pausa para refletir.