‘Potlatch’, a glória do desperdício
Das palavras que costumo abordar nesta coluna, a de hoje é provavelmente a menos conhecida. Potlatch vem de uma língua indígena da América do Norte, onde o fenômeno que designa foi observado pela primeira vez por um estudioso ocidental no início do século 20. E que fenômeno é esse? Coisa simples, ainda que bizarra: potlatch […]
Das palavras que costumo abordar nesta coluna, a de hoje é provavelmente a menos conhecida. Potlatch vem de uma língua indígena da América do Norte, onde o fenômeno que designa foi observado pela primeira vez por um estudioso ocidental no início do século 20. E que fenômeno é esse?
Coisa simples, ainda que bizarra: potlatch era a cerimônia em que, em certas sociedades primitivas, promovia-se uma troca agressiva e perdulária de presentes e, em casos extremos, até a destruição ritual de riquezas como forma de demonstrar superioridade sobre os rivais. Podemos imaginar que os exemplos mais agudos funcionavam mais ou menos assim: o chefe de um clã ou aldeia fazia no centro da praça uma montanha de grãos de sua última colheita e lhe tacava fogo. O líder do clã rival, obrigado então a destruir patrimônio equivalente, empilhava pratos e vasos de fina cerâmica e se punha a espatifá-los animadamente a golpes de borduna. Animais de estimação e até escravos também podiam ser sacrificados na vertigem de desperdício de um potlatch.
Não era raro que todos os lados envolvidos num ritual desse tipo terminassem o jogo na miséria, mas cobertos de glória, como se a riqueza material aniquilada valesse o dobro no plano simbólico, em honra. É o que diferencia o potlatch do (digamos) ritual capitalista em que, volta e meia, bens são destruídos para “regular o mercado” em caso de superprodução. A destruição interessada não tem o mesmo significado: é preciso que ela seja inteiramente gratuita.
Hoje acredita-se que o potlatch seja uma curiosidade antropológica enterrada no passado enigmático da espécie, com ecos entrevistos apenas em atos performáticos como a destruição de guitarras e amplificadores por artistas furiosos ou doidões – ou ambos – em certos shows de rock. Mas será só isso?
Às vezes tenho a impressão de que o Brasil, com todas as suas riquezas, é um adepto tardio e disfarçado do potlatch. Já incineramos numa pira ritual nossas florestas, índios, escravos, rios. Não satisfeitos, reduzimos periodicamente a caquinhos o patrimônio simbólico de nossas instituições políticas via corrupção endêmica, patrimonialismo, impunidade, incompetência administrativa etc. Mas tudo isso ainda parece pouco e, insaciáveis, vamos atirando geração após geração de brasileiros na máquina de moer futuros de uma educação pública grotesca.
Quem vai encarar? O título mundial de potlatch é nosso e ninguém tasca.