Pontual: a língua muda sempre na hora certa
“Tenho ouvido, com frequência, na TV, pessoas de todos os níveis sociais utilizando a palavra ‘pontual’ com o sentido de ‘isolado’. Por exemplo, ‘o atraso do avião foi um caso pontual’. Quando foi que a palavra pontual mudou de sentido? Esse linguajar fere os meus ouvidos!” (Roselia Gonçalves) É direito de cada falante decidir o […]
“Tenho ouvido, com frequência, na TV, pessoas de todos os níveis sociais utilizando a palavra ‘pontual’ com o sentido de ‘isolado’. Por exemplo, ‘o atraso do avião foi um caso pontual’. Quando foi que a palavra pontual mudou de sentido? Esse linguajar fere os meus ouvidos!” (Roselia Gonçalves)
É direito de cada falante decidir o que considera agradável ou desagradável aos seus ouvidos. O que não se pode discutir é que a língua está o tempo todo em movimento, criando novas realidades que as autoridades da área – uma turma liderada por gramáticos e lexicógrafos – muitas vezes só vão assimilar com uma ou duas gerações de atraso. A ampliação semântica de “pontual” é um desses casos.
A primeira e mais usada acepção de pontual – palavra que herdamos do latim medieval punctualis – é de fato a que se refere à precisão no tempo: pontual é aquilo que não chega antes nem depois, mas justamente na hora marcada. No entanto, está amplamente disseminado no português contemporâneo o sentido de evento isolado, tópico, de alcance restrito, não representativo do todo. De onde veio isso? Do inglês? De nossa imensa ignorância coletiva?
Não parece se tratar de nenhum dos casos. Pontual, em tal acepção, não pode ser considerado um anglicismo semântico pela razão simples de que punctual tem na língua de Shakespeare o mesmo significado básico de cumpridor de horário. É mais provável que se trate de um sentido figurado que transferiu a ideia de ponto do tempo para o espaço, ainda que um espaço abstrato e puramente mental – recuperando, na mão inversa, a analogia que esteve na origem do sentido tradicional da palavra, nascida de punctum, ponto, termo decididamente espacial.
Para quem, ainda assim, só acredita que as palavras ganhem “foros de cidade” – como diria Machado de Assis – quando um dicionário de prestígio as registra, uma notícia importante: o Houaiss, que não contemplava esse novo sentido de pontual em sua primeira edição, atualizou-se e hoje diz o seguinte, entre outras acepções: “Que se reduz a um ponto ou a um detalhe do todo; tópico”.