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Este blog tira dúvidas dos leitores sobre o português falado no Brasil. Atualizado de segunda a sexta, foge do ranço professoral e persegue o equilíbrio entre o tradicional e o novo.

Peitudo-Rei

‘Galo’, pintura de Cândido Portinari Peitudo-Rei era belo. Coberto de penas brancas, pretas e azuis num padrão dramático que evocava pinceladas expressionistas, tinha pernas firmes, gordas veias estriando os olhos e um bico amarelo-canário longo e pontudo, de curvatura apenas esboçada. A matéria vermelha vibrátil e quase obscena que compunha sua crista escorria na forma […]

Por Sérgio Rodrigues
Atualizado em 31 jul 2020, 03h05 - Publicado em 14 set 2014, 13h43

'Galo', pintura de Cândido Portinari

‘Galo’, pintura de Cândido Portinari

Peitudo-Rei era belo. Coberto de penas brancas, pretas e azuis num padrão dramático que evocava pinceladas expressionistas, tinha pernas firmes, gordas veias estriando os olhos e um bico amarelo-canário longo e pontudo, de curvatura apenas esboçada. A matéria vermelha vibrátil e quase obscena que compunha sua crista escorria na forma de gotas espessas entre o bico e o pescoço, como a de qualquer galo de quintal. Mesmo o observador mais desatento, contudo, reconheceria que aquele não era um galo de quintal: Peitudo-Rei tinha quase o dobro do tamanho do maior galo que Juvenal já vira, o que equivalia a dizer que, esticado dos pés à cabeça, chegaria à altura de uma criança de dez anos.

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Habitava um viveiro confortável bem no miolo da colmeia intrincada da granja, no centro da praça onde vinham desaguar todos os corredores em que os outros frangos se amontoavam. Estes, os súditos, eram bem menores que Peitudo-Rei, embora todos eles, Juvenal sabia, fossem dotados pela arte maligna da engenharia genética de coxas e peitos avantajados, estufados, disputados a tapa pelos consumidores humanos em corredores de supermercado – joias da coroa da granja Lecoq. Peitos e coxas que muitas vezes lhes pesavam excessivamente e quebravam suas pernas frágeis, transformando numa desumana fábrica de dor e toxinas a granja que o repórter Juvenal Terra, câmera na mão, esperava desmascarar de uma vez por todas em sua visita clandestina no meio da madrugada.

Os súditos dormiam enquanto o Rei lhes velava o sono com porte magnífico, ainda que seu olhar vazio ou demente – talvez alarmado, achou Juvenal – temperasse a grandeza com certa fragilidade. Era um galináceo, afinal. Representante de uma das espécies mais estúpidas a vingar no esquema da evolução.

O que aconteceu em seguida demorou a fazer sentido para Juvenal Terra. A princípio pensou que a crosta terrestre estivesse rachando. Depois, que seu próprio crânio se partisse lentamente de alto a baixo. Era um ruído de ossos esmigalhados, ferros atritados, exércitos medievais em corpo a corpo, trovões. Finalmente compreendeu: Peitudo-Rei estava cantando. Todas as luzes se acenderam. Os súditos acordaram, secundando o líder com suas vozes que, se individualmente deviam ser mais modestas, juntas compunham um turbilhão cósmico.

Sem compreender o que fazia, Juvenal começou a correr em pânico, dobrando esquina atrás de esquina entre frangos enlouquecidos, mas a arquitetura labiríntica da granja o levava cada vez mais para dentro, cada vez mais para o âmago do desvario. No meio da barulheira, não ouviu o único clac que fez as grades das gaiolas se abrirem de uma só vez. As bicadas lhe caíram em cima todas ao mesmo tempo, muitas delas nos olhos, e o mundo escureceu alguns segundos antes de desaparecer para sempre.

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