Para o cheque não passar em branco
Em crônica saborosa publicada esta semana no “Globo”, Flávia Oliveira fala sobre um dos efeitos menos óbvios do irremediável declínio dos talões de cheque: a condenação ao desuso de uma expressão como “passar (ou dar, ou assinar) um cheque em branco”, com o sentido de confiar cegamente (em alguém). É possível que Flávia esteja certa […]
Em crônica saborosa publicada esta semana no “Globo”, Flávia Oliveira fala sobre um dos efeitos menos óbvios do irremediável declínio dos talões de cheque: a condenação ao desuso de uma expressão como “passar (ou dar, ou assinar) um cheque em branco”, com o sentido de confiar cegamente (em alguém).
É possível que Flávia esteja certa sobre essa expressão, que de resto não me parece ter chegado a ser tão disseminada assim, mas seu texto me deixou pensando em como são complexas as relações entre linguagem e realidade. Nem tudo o que cai em desuso no plano das coisas desaparece do plano das palavras. Algumas vezes uma imagem antiga sobrevive, já esvaziada de qualquer sentido literal, mas por isso mesmo mais forte. Em certos casos, praticamente indestrutível.
Até hoje, num país maciçamente urbano, falamos em “separar o joio do trigo”, com o sentido de distinguir o que é bom do que é ruim. Quantas pessoas, ao usarem tal expressão, pensam em sua origem rural? Continuamos discando números de telefone, como se os aparelhos ainda tivessem discos, e embarcando, como se eles fossem barcos, em aviões e trens.
Não, não se trata de fazer a defesa do cheque em branco. Como eu disse, é provável que Flávia esteja certa. Apenas de reconhecer que as palavras às vezes significam mais do que aparece escrito nelas como valor de face.