Onde foi parar o glamour da gramática?
Reproduzo abaixo um texto que publiquei aqui ano passado, tecendo algumas considerações sobre um espantoso caso de parentesco etimológico: o das palavras gramática e glamour. Essa associação ganha novos significados à luz da polêmica levantada pelo livro “Por uma vida melhor”. No fogo cruzado em que se viu apanhada a gramática tradicional, guardiã da norma […]
Reproduzo abaixo um texto que publiquei aqui ano passado, tecendo algumas considerações sobre um espantoso caso de parentesco etimológico: o das palavras gramática e glamour. Essa associação ganha novos significados à luz da polêmica levantada pelo livro “Por uma vida melhor”. No fogo cruzado em que se viu apanhada a gramática tradicional, guardiã da norma culta, não faltaram vozes para defendê-la, mas mesmo estas dão a impressão de considerar seu estudo uma espécie de aborrecimento necessário, como um remédio amargo. Os benefícios são enormes, certo, mas não vi ninguém mencionando que a coisa em si pode ser prazerosa. Talvez seja mesmo impossível recuperar a aura de charme que um dia foi associada à gramática, o que é uma pena: as vantagens pedagógicas seriam incalculáveis.
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Sim, o glamour – palavra da língua inglesa que adotamos amplamente por aqui e que significa, como se sabe, “atração, charme pessoal, encanto” – é um filho natural de grammar, isto é, gramática. Como isso foi acontecer? Simples: uma variação escocesa de grammar, gramarye, virou glamour ao ser reintroduzida na corrente principal da língua. Sir Walter Scott, escritor de sucesso na virada entre os séculos 18 e 19, fez muito por sua popularização.
Até aí tudo certo, mas… o que tem a ver uma coisa com a outra? Que glamour, charme, atração pode exercer a gramática – que em última análise saiu do grego grammatiké, “ciência ou arte de ler e escrever” –, essa disciplina que todo mundo encara como árida ou no mínimo difícil? Como a gramática conseguiu ser vista não só como encantadora, mas merecedora de dar nome ao próprio encanto?
É aí que entramos no túnel do tempo. Um dos sentidos expandidos de grammar no inglês medieval era o de “qualquer tipo de conhecimento elevado, especialmente em ciências ocultas”. O glamour se situava no encontro entre o saber e a magia. Ser culto, ilustrado, saber mais do que as pessoas comuns era o que garantia então ao glamouroso seu irresistível encanto. A era “Vogue” viria bem mais tarde.