O verbo pertinir é pertinente, meritíssimo?
“Olá, Sérgio! Sou estudante do 4º período de Direito, na Universidade Federal de Alagoas. Desde que ingressei no curso, tenho me deparado, constantemente, em diversos livros jurídicos, com certo verbo, bastante curioso: ‘pertinir’. Nunca tinha ouvido falar da existência desse verbo e também não o encontro em nenhum dicionário de nossa língua. Gostaria de saber […]

“Olá, Sérgio! Sou estudante do 4º período de Direito, na Universidade Federal de Alagoas. Desde que ingressei no curso, tenho me deparado, constantemente, em diversos livros jurídicos, com certo verbo, bastante curioso: ‘pertinir’. Nunca tinha ouvido falar da existência desse verbo e também não o encontro em nenhum dicionário de nossa língua. Gostaria de saber se tal verbo existe mesmo, ou se é apenas um delírio dos juristas (risos). Desde já, obrigado pela atenção!” (Eanes Guelton)
Temos em português o substantivo pertinência e o adjetivo pertinente, mas o verbo subjacente, não. Como Eanes, eu também não consegui desencavar traço dele em dicionários velhos ou novos. Se um dia existiu, caiu em desuso a ponto de passar batido pelo próprio Houaiss, que aprecia mais que a média dos dicionários registrar verbetes e acepções abandonadas pelo português moderno. O mais provável é que nunca tenha havido nada parecido no português antigo.
No entanto, se o verbo pertinir não está no radar dos lexicógrafos, é óbvio que linguisticamente ele existe, pois Eanes costuma esbarrar com ele em seus estudos. Como isso é possível?
Simples: estamos falando de um espécime de juridiquês cascudo, criação marginal e abastardada do jargão jurídico que os lexicógrafos ainda não se animaram a abonar – e talvez nunca o façam.
Formulaica, repleta de expressões em latim, é sabido que a linguagem do Direito tira grande parte de sua força do fato de ser ininteligível aos não iniciados. Isso os ministros do STF nos lembram mais uma vez, com seus votos barrocos contra e a favor do aborto de fetos sem cérebro. No entanto, o hermetismo do juridiquês lusófono castiço é cuidadosamente lastreado na tradição do idioma. Estamos falando de um jargão que é mais do que metido a besta, é o próprio patoá do poder, e nele se deliberam coisas que decidem o destino de multidões.
Evidentemente, nada disso torna o juridiquês imune – pelo contrário – ao pedantismo, à mistificação e à ignorância. É fácil ver de onde saiu o verbo pertinir. Decalque do latim pertinere (literalmente, “ir até, estender-se a”, e por extensão “concernir, ser relativo a”), é tão irmanado ao francês partenir e ao inglês pertain que deixa entrever o barbarismo clássico do mau tradutor por baixo da capa de latinismo erudito.
Se lá dentro é uma invencionice condenada por juristas que cultivam a filologia, pertinir, no mundo fora do fórum, é uma palavra da qual se deve fugir duplamente – por ser um exemplo de juridiquês e por ser um exemplo de mau juridiquês. Prefira “concernir”, se o texto for mais pomposo, ou “dizer respeito a, ter a ver com”, se não for.