O que a especulação tem a ver com o espelho
“Sérgio, ‘especulação’ imobiliária tem a ver com espelhos?” (Pedro Vinicius Nobre) A resposta à dúvida de Pedro Vinicius é sim: o espelho e a especulação (imobiliária, financeira etc.) estão etimologicamente ligados. Não de forma direta, porém. As duas palavras são descendentes da mesma família latina, derivada do verbo specere, “ver, olhar, contemplar”. Trata-se de um […]

“Sérgio, ‘especulação’ imobiliária tem a ver com espelhos?” (Pedro Vinicius Nobre)
A resposta à dúvida de Pedro Vinicius é sim: o espelho e a especulação (imobiliária, financeira etc.) estão etimologicamente ligados. Não de forma direta, porém.
As duas palavras são descendentes da mesma família latina, derivada do verbo specere, “ver, olhar, contemplar”. Trata-se de um clã numeroso, que inclui vocábulos como espetáculo e espécie.
Speculum deu em espelho; speculationis, em especulação. Até aí, tudo simples. No entanto, o sentido de especulação que o leitor traz para a mesa não é o mesmo que a palavra tinha em latim, o que torna um tanto turva a relação de uma coisa com a outra. Vamos tentar reconstituir o caminho que levou a especulação a se tornar o que é hoje.
No caso de espelho, a proximidade com a ideia de “ver, olhar” é evidente. Specularium era vidraça, “o que permite ver através de si”, e speculum, espelho, “o que reflete o olhar de quem vê”. Na mesma linha, a palavra specula significava “lugar de observação, atalaia”, isto é, “ponto do qual se tem uma visão privilegiada de algo”.
Desse substantivo, specula, brotou ainda no latim clássico speculationis com o sentido de “espionagem”. O ato de olhar começava a perder sua inocência, mas isso era só o começo.
Nas línguas românicas, o sentido de observação e estudo contido no verbo especular (existente em português desde o século XV) transbordou desde o início para o de “fazer conjecturas, elaborar teorias sobre algo”. Tal acepção existe em português até hoje, como se sabe.
Contudo, ainda não tínhamos chegado à especulação como “operação comercial em que uma das partes obtém lucros acima do razoável, por abusar da boa-fé da outra, ou por tirar proveito de períodos de exceção, como guerras, catástrofes naturais, safra ruim etc., oferecendo produtos em falta, superfaturados” (Houaiss).
Para tanto, seria preciso unir a ideia de observação atenta de um cenário ou fenômeno (atalaia) à disposição de agir furtivamente para tirar proveito de uma posição privilegiada (tocaia). O registro mais antigo que encontrei de tal uso é o que fez Robespierre, um dos líderes da Revolução Francesa, em 1792, ao acusar seus inimigos de “especular sobre a miséria pública”, segundo o Trésor de la Langue Française.
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