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Sobre Palavras

Por Sérgio Rodrigues Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Este blog tira dúvidas dos leitores sobre o português falado no Brasil. Atualizado de segunda a sexta, foge do ranço professoral e persegue o equilíbrio entre o tradicional e o novo.

O livro que ensina a ‘falar errado’: moderação numa hora dessas?

Um amigo virtual que é linguista me escreve, irritado, para dizer que não aguenta mais ver o trabalho de seus pares ser tratado na imprensa como um incentivo ao vale-tudo, coisa de gente maluca. Referia-se à polêmica provocada pelo livro “Por uma vida melhor” (Global), adotado pelo MEC, em que um capítulo dedicado à defesa […]

Por Sérgio Rodrigues
Atualizado em 31 jul 2020, 11h59 - Publicado em 15 Maio 2011, 16h36

Um amigo virtual que é linguista me escreve, irritado, para dizer que não aguenta mais ver o trabalho de seus pares ser tratado na imprensa como um incentivo ao vale-tudo, coisa de gente maluca. Referia-se à polêmica provocada pelo livro “Por uma vida melhor” (Global), adotado pelo MEC, em que um capítulo dedicado à defesa da “norma popular” do português explica não haver erro numa frase como “os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”, uma vez que duas flexões, a do artigo e a do verbo, são mais que suficientes para indicar o plural no quadro de uma gramática alternativa, intuitiva, mas cientificamente rigorosa. “É um caso impressionante de alucinação coletiva”, diz meu amigo. “Há décadas, centenas de linguistas falam uma coisa, e a ‘grande imprensa’ e o ‘grande público’ entendem outra”.

Como um não-linguista que frequentemente lança mão nesta coluna de saberes dessa área, entendo a irritação: o tal livro, afinal, não prega que a norma culta seja abolida, apenas a situa em pé de igualdade com outras normas. No entanto, entendo também, e como, as pessoas que não entendem ou não veem valor nesse tipo de argumento. Entrar em debates tão polarizados com espírito moderador é sempre perigoso, pois corre-se o risco de não agradar a lado nenhum, mas fiquei pensando: se a linguística, que é hegemônica nos meios acadêmicos, simplesmente não consegue se fazer entender no mundo lá fora, de quem será a culpa?

Lanço aqui uma hipótese: a supervalorização da ideia de “preconceito linguístico”, pedra de toque de muitos linguistas, carrega um equívoco relativista. Não, a norma culta não está em pé de igualdade com outras normas. Cientificamente, tudo bem. Social e pedagogicamente, não. A menos que se pretenda começar a revolução pela língua, “preconceito” é uma palavra inadequada para dar conta de um complexo sistema de raízes profundas e tentáculos incontáveis, que abrange o edifício social como um todo e que veta o acesso de quem fala “os livro estão emprestado” aos andares onde os sofás são mais confortáveis, paga-se um salário maior e toma-se todo tipo de decisão.

Será tal sistema de valores uma iniquidade, uma violência exercida pela elite sem a menor base científica? Pode-se encarar o problema assim, sem dúvida. A linguística moderna provou que não há nada na construção “os livro estão emprestado” que seja funcional ou intrinsecamente inferior a “os livros estão emprestados”. Ocorre que nem só de aspectos funcionais ou intrínsecos vive a língua. Ela é também um capital social de características únicas e maravilhosas: tem enorme valor e sua acumulação primitiva está ou deveria estar acessível, por meio da educação, a qualquer um, rico ou pobre. O que, numa sociedade democrática, faz dela um instrumento inigualável de ascensão social.

A minimização desse aspecto da questão pode muito bem ser o motivo do fracasso dos linguistas na comunicação de sua mensagem. Escrevo sobre a língua na imprensa há mais de dez anos e sei que nem os cidadãos que eles pretendem defender ao bater na tecla do “preconceito” enxergam valor algum em ser informados de que seu jeito de falar está certo também. Isso é algo que, por um lado, eles já sabem – de forma tão intuitiva quanto a gramática que rege seu uso da língua – mas por outro lado desprezam. Querem mais, e é justo que queiram mais.

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O paralelo da norma culta da língua com a “mera etiqueta” é tosco, mas trata-se de uma imagem que muitos estudiosos gostam de usar para expor a suposta inconsistência da gramática normativa, então vamos lá: não há nada de intrinsecamente inferior no hábito de chupar ruidosamente os dentes ou coçar o saco à vista de todos. Socialmente, porém, é o beijo da morte. Aí entra a complexa questão do uso didático desse “saber”, o de que chupar os dentes enquanto se coça o saco não faz mal à saúde e ainda tem inestimável valor na autoafirmação de quem cresceu vendo seu avô e seu pai fazerem o mesmo. Será que um professor de boas maneiras deve dizer a seus alunos que tais práticas são elogiáveis, normalíssimas, devendo eles apenas tomar cuidado para não se dedicar a elas na frente de gente esnobe e preconceituosa?

É claro que a língua – como as roupas, os modos à mesa, o repertório de referências culturais – é um código de poder. Sempre foi e tudo indica que sempre será, pelo menos enquanto vivermos numa sociedade de classes (e nunca vivemos em outro tipo de sociedade). A questão é: o que fazer a partir daí? Será que empoderar (para usar um neologismo favorecido pelo politicamente correto) é passar a mão paternalista na cabeça de quem não domina a norma culta e, em nome de sua sacrossanta autoestima, dizer que assim está bom? Ou dar a essa pessoa os intrumentos e a maior motivação possível para dominar o código que nos domina? Ah, uma coisa não exclui a outra? Será que não? São dúvidas sinceras expostas com candura. Que venham as pedras dos dois lados.

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