O figo, o fígado e o sicofanta
O figo, fruto da figueira, é uma palavra derivada do latim ficus e presente em nossa língua desde o século XIII, mas sua simplicidade etimológica termina aí. Todo o resto que se liga a ele é surpreendente. Seu curioso papel na origem da palavra fígado é um clássico. O ancestral de fígado é o latim […]

O figo, fruto da figueira, é uma palavra derivada do latim ficus e presente em nossa língua desde o século XIII, mas sua simplicidade etimológica termina aí. Todo o resto que se liga a ele é surpreendente.
Seu curioso papel na origem da palavra fígado é um clássico. O ancestral de fígado é o latim ficatum – a mesma fonte do espanhol hígado, do francês foie e do italiano fegato. Ocorre que ficatum, antes de significar fígado, era um adjetivo que queria dizer “alimentado com figos”.
Como se passou de um sentido ao outro? “Esta denominação”, afirma o filólogo catalão Joan Corominas em seu Breve diccionario etimológico de la lengua castellana, “se explica pelo costume dos antigos de alimentar com figos os animais cujo fígado comiam.”
Convém explicar. O fígado de tais animais era chamado em latim jecur ficatum, isto é, “fígado (de animal) engordado com figos” – locução em que era jecur, e não ficatum, que queria dizer fígado.
Num processo linguístico que está longe de ser incomum (veja-se, em exemplo atualísssimo, como “shopping” vem tomando entre nós o lugar de “shopping center”), o adjetivo terminou por se substantivar, engolindo o jecur. De termo coadjuvante, ficatum viu-se promovido ao estrelato, já sem memória de seu passado botânico.
Volto a recordar a interessante história do vocábulo fígado quando esbarro, por puro acaso, em outra travessura aprontada pelo figo no reino das palavras. Sicofanta é um substantivo de sabor antiquado que, se soa simpaticamente jocoso hoje em dia, por seu jeitão de vovô, nada tem de leve: suas acepções principais são as de “delator” e “pessoa caluniadora, mentirosa”.
E o que o figo tem a ver com isso? Bom, consta que sicofanta veio do grego sykophántes, que tinha o complicado sentido de “denunciador dos que exportavam figos em contrabando ou dos que roubavam os frutos das figueiras sagradas”, nas palavras do Houaiss. O dicionário brasileiro registra que há entre os etimologistas quem encare tal tese com alguma desconfiança, por lhe faltar documentação, mas o referencial Corominas, por exemplo, lhe dá crédito.