O fantasma do Lido (à moda do Paulo)
Passando outro dia pela praia do Flamengo, de volta do centro (onde se ganha a vida) para a beira-mar (onde logo tratamos de perdê-la), vi um fantasma nítido, irrevogável. Não tinha a cara lívida do que apareceu para Hamlet. Não era feito de neblina como os que assombram causos interioranos à beira do fogo. Tampouco […]

Passando outro dia pela praia do Flamengo, de volta do centro (onde se ganha a vida) para a beira-mar (onde logo tratamos de perdê-la), vi um fantasma nítido, irrevogável. Não tinha a cara lívida do que apareceu para Hamlet. Não era feito de neblina como os que assombram causos interioranos à beira do fogo. Tampouco era aterrador como aquele que Henry James me aparafusou para sempre no flanco mais tenro da alma. Era um fantasma comercial, cotidiano, sensato, quase alegre. Tinha um vendedor de pipoca na frente e um letreiro iluminado que anunciava Blade Runner – O caçador de androides. O mais espantoso é que o filme não era velho. Fantasmas são assim mesmo, fantasmáticos, e têm o condão de rir do tempo que passa como de uma piada excelente. Saltei do ônibus e para ele me dirigi com meus passos de mortal.
O cinema Lido era dois. Como partidas de futebol, lados de um long-play, nádegas, certos casais unidos demais, havia duas metades dele, chamadas Lido I e Lido II. Na língua da gente era sempre um, como no mistério da Santíssima Dualidade: “Vamos ao Lido?”. Ao Lido fui, eu que sempre o achei um cinema meio ordinário no conforto e na limpeza. Era como se tivesse acabado de chegar de Minas e o visse pela primeira vez, mais intrigado pela homonímia com o bas-fond de Copacabana – e de ambos com o cabaré parisiense e a ilha veneziana onde Aschenbach se apaixonou pelo jovem Tadzio – do que por encontrá-lo vivo tantos anos depois de morto.
Comunidade Evangélica Internacional da Zona Sul, dizia o letreiro sob o letreiro. Era o fantasma dum fantasma, e inventei, então, a teoria do contraponto das janelas cósmicas: lá estava um tempo de devoção íntima e cinefilia de massa descortinado do parapeito de um tempo de devoção de massa e cinefilia íntima. Na calçada, o homem da corrocinha de pipoca exibia uma barba inverossímil de Tolstoi ou Conselheiro. Achei que me cumprimentava com um leve cabeceio, mas talvez tivesse apenas sono. O movimento era fraco naquele início de noite.
Tirando proveito da fila invisível, comprei sem demora um ingresso invisível na bilheteria invisível e entrei. No púlpito technicolor, um homem de terno cinza, olhos verdes e gravata vinho perorava com língua roxa e veias azuis saltadas no pescoço branquíssimo: “Neste momento, irmãos, enquanto aqui nos reunimos, o pastor Feliciano é acuado pelos cães ímpios! Morram os cães ímpios!”. A plateia do cinema repetia em coro: “Morram! Morram! Aleluia!”.
Isso me fez lembrar que nada tenho contra religião alguma. Só com boa dose de canalhice se pode negar que todo homem nasce com o direito divino de crer, descrer, beber, drogar-se; adoecer de poesia em excesso ou poesia nenhuma; alistar-se em missões humanitárias e dilapidar heranças vultosas na roleta; sacrificar a vida por amor, por besteira; abraçar uma causa política ou o corpo flácido de uma ex-atriz de pornochanchada. Tudo isso são tabuinhas neste vórtice que nos traga a todos em direção ao fundo: náufragos merecem respeito.
O que me indispôs com o auditório do Lido foi aquele amor viscoso à morte. “Morram! Morram! Aleluia!” A vida dos replicantes estava por um fio, Rick Deckard recarregando com ar assustado sua pistola futurista. O pregador de terno vinho e olhos branquíssimos, mas talvez fosse o contrário, voltou-se para mim. “Qual é o seu nome, irmão?”, inquiriu. “Paulo”, balbuciei, como se fosse lógico. Harrison Ford assestou a arma contra a plateia e puxou o gatilho três vezes. “Morram! Morram! Aleluia!”
Desabei com três esguichos de molho de tomate no peito. Só então compreendi, em rápida sucessão, que era eu o replicante que Deckard caçava; que o Lido não havia mais; que na remota capital do país um homem minúsculo se agarrava à sua grande sinecura; que meu nome não era Paulo. Pus-me de pé com a pressa de um boneco de mola e saí para a rua à caça do fantasma de um ônibus – ou biga, cabriolé, Mustang, espaçonave – que me levasse para casa a tempo do jantar. O pipoqueiro e sua barba tinham evaporado meticulosamente na maresia.
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A crônica acima é uma homenagem ao meu conterrâneo Paulo Mendes Campos (foto), cuja obra começa a ser relançada pela Companhia das Letras, e foi publicada também no blog da editora como parte dos festejos a esse mestre do gênero.