O duradouro impacto do verbo impactar
Prezado Sérgio, tomei conhecimento da sua coluna há pouco tempo e já virei um fã. Eu moro nos EEUU e de vez em quando tomo um susto ao ler uma palavra nova ou construção gramatical inusitada numa publicação brasileira na internet. Recentemente, pela segunda vez, encontrei ‘impactar’ no sentido de ‘afetar’. O Estadão é o […]
Prezado Sérgio, tomei conhecimento da sua coluna há pouco tempo e já virei um fã. Eu moro nos EEUU e de vez em quando tomo um susto ao ler uma palavra nova ou construção gramatical inusitada numa publicação brasileira na internet. Recentemente, pela segunda vez, encontrei ‘impactar’ no sentido de ‘afetar’. O Estadão é o contraventor no caso. Soa-me horrível. Só pode ser cópia do inglês ‘to impact’, que recentemente também passou a ser lastimavelmente usado em alguns meios de objetivos oblíquos (principalmente literatura de marketing e comerciais) no sentido de ‘to affect’. Antes só era empregado para dentes (‘impacted teeth’) que, por terem seu crescimento normal prejudicado por outros dentes, não brotam totalmente. O seu uso no inglês neste novo sentido, em vez de ‘to affect’, é fortemente condenado pelos gramáticos anglófonos. ‘Impactar’ deveria ter seu uso restrito a ‘colidir’ (já que um impacto é uma colisão), nunca substituindo ‘afetar’, que vem funcionando perfeitamente bem, sem ambiguidade, por séculos. Anglicismos são em geral irritantes. Quando o anglicismo vem de uma palavra usada erradamente em inglês, temos um desastre. O que você acha deste novo uso de ‘impactar’? (Roberto Osório)
A questão trazida de longe por Roberto nos dá uma boa oportunidade de refletir sobre dois aspectos instigantes da língua: a autonomia que ela sempre demonstra para se reinventar à revelia de professores e gramáticos (a não ser quando morre) e a autonomia que tem cada falante para, no universo das possibilidades que ela oferece, fazer o seu recorte estilístico pessoal.
O primeiro aspecto faz com que o (já nem tão) novo uso do verbo impactar mencionado por Roberto tenha sido incorporado de tal forma à língua do dia a dia, inclusive por falantes cultos, que lutar contra ele seja inútil. Tudo indica que se trata, sim, de uma importação do inglês, idioma em que tal uso não convencional – que gramáticos conservadores até hoje condenam – foi registrado pela primeira vez em 1935.
Chamar de erro essa ampliação semântica de impactar (em última análise um derivado do latim impactus, “impelido contra”) seria um equívoco. Pode-se dizer que se trata de um modismo e que o jargão corporativo-marqueteiro em que primeiro se alastrou não é uma boa carta de recomendação. Certo. Mas deve-se reconhecer que ele se baseia num sentido figurado, metafórico, que é um dos motores clássicos da transformação das palavras. “Impactar” com o significado literal de “exercer impacto sobre, colidir contra” existe em português pelo menos desde 1958. Seu uso metafórico como sinônimo de afetar (“o aumento do salário mínimo vai impactar a inflação”) é legítimo e acrescenta à frase uma intensidade e uma violência que o verbo afetar não traduz, o que talvez ajude a explicar seu sucesso.
O segundo aspecto, relativo à autonomia de cada falante para aceitar ou rejeitar tais inovações, me leva a simpatizar inteiramente com a antipatia de Roberto. Impactar, impactado e impactante também não frequentam meu vocabulário. Questão de estilo, só.
Sobre essa resistência, vale registrar o que diz o American Heritage Dictionary: “O uso de impact como um verbo que significa ‘ter um efeito’ costuma exercer um grande impacto sobre os leitores. Em nossa pesquisa de 2001, 85 por cento da amostragem de usuários desaprovavam a construção (…) Não é claro por que esse uso provoca reação tão forte, mas não pode ser por causa da novidade. Impact tem sido usado como verbo desde 1601 e seu uso moderno, figurado, data de 1935. Talvez seja porque sua aparição frequente nas falas cheias de jargão de políticos, militares e analistas financeiros continue a despertar suspeitas nas pessoas”.
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O colunista está saindo de férias. O Sobre Palavras voltará a ser atualizado no dia 1º de novembro. Até lá.