O dossiê contra os puristas
Puristas eram (e peço desculpas pelo verbo no passado a qualquer possível sobrevivente da espécie que esteja me lendo) uns sujeitos engraçados. Diziam: engajado não pode! É galicismo, coisa de francês, melhor dizer aferrado, empenhado. Ah, sei: quer dizer que “artistas engajados” é mau português e todos deveríamos falar e escrever “artistas aferrados”? Puristas condenavam […]
Puristas eram (e peço desculpas pelo verbo no passado a qualquer possível sobrevivente da espécie que esteja me lendo) uns sujeitos engraçados. Diziam: engajado não pode! É galicismo, coisa de francês, melhor dizer aferrado, empenhado. Ah, sei: quer dizer que “artistas engajados” é mau português e todos deveríamos falar e escrever “artistas aferrados”? Puristas condenavam até abajur: em seu lugar, recomendavam instalar um lucivelo.
Como se nota, tolice enorme, e dossiê, a palavra da semana, é mais uma prova disso. A visão ultranacionalista do idioma – que foi mais popular em Portugal, mas floresceu também no Brasil, entre o século 19 e o 20 – era fruto de boas intenções amparadas num entendimento arcaico de como funcionam as línguas. O purismo condenou dossiê como uma importação tardia (anos 50) e desnecessária do francês dossier, “conjunto de documentos sobre determinado assunto ou pasta em que eles são agrupados”. Dossier saiu do latim dossum, “dorso, costas” – provavelmente em referência à pasta em que se agrupam os tais documentos, com sua etiqueta no dorso.
O paladino de uma pureza impossível então dizia: ora, dossiê é um sinônimo de documentação, processo, pasta. Por que não usar essas belas palavras lusofônicas em vez de dar guarida ao intruso? Não enxergava que dossiê não era processo, não era pasta. Sinônimos nunca são perfeitamente intercambiáveis. Mudando-se uma palavra, muda-se a cor e o cheiro da frase, ainda que o sentido geral permaneça o mesmo. Palavras arrastam caudas de sobressentido, também chamadas conotações. E o dossiê está cheio demais delas para ser substituído por um sinônimo qualquer sem que a comunicação perca substância cultural.
Não adianta: com suas conotações explosivas, sua aura de mistério e suas promessas de segredos cabeludos, dossiê, a palavra, deitou raízes na língua com vigor análogo ao que a cultura do dossiê exibe no submundo da política nacional. Seria um empobrecimento, e não só por causa dos aloprados, trocá-lo por uma tradução purista. Sem mencionar o baque para a indústria dos thrillers. Como se chamaria aquele livro de John Grisham, “A pasta Pelicano”? E o de Frederick Forsyth, “A documentação Odessa”?
Ninguém mais diz que dossiê está errado, ainda bem. Mas é sempre bom lembrar casos como esse quando tantos novos estrangeirismos – alguns destinados a ficar, outros puro fogo de palha – aparecem todo dia para testar nosso discernimento.