O antropólogo do funk e o ‘espectro do arrastão’
Arpoador lotado (Gabriel de Paiva/Agência O Globo) Parece que o espectro que ronda nossa cidade maravilhosa não é o do comunismo (anunciado por Marx e Engels naquela primeira frase enigmática de seu “Manifesto”), mas sim o do arrastão. Mês passado, ele reapareceu de sunga branca, fazendo búú nas praias (que, para infelicidade de alguns, não […]

Parece que o espectro que ronda nossa cidade maravilhosa não é o do comunismo (anunciado por Marx e Engels naquela primeira frase enigmática de seu “Manifesto”), mas sim o do arrastão. Mês passado, ele reapareceu de sunga branca, fazendo búú nas praias (que, para infelicidade de alguns, não são tão chiques quanto as de Mônaco, mesmo em frente ao Fasano). Eu pensei: já vi esse filme trash antes, e não era cena do Gasparzinho. Voltando à minha filosofia marxista customizada: a história se repete em farsa da farsa da farsa, ad infinitum, como no loop eterno da instalação “Ão”, de Tunga, com trecho repetido de “Night and day” (não confundir com a saltitante “Day’n’nite” de Kid Cudi) servindo de trilha sonora para passeio onde não há luz no fim do túnel (meu primeiro contato com sua película rastejante foi nos anos 1980 em galeria de Ipanema; hoje está exposta no Inhotim).
O trecho acima é do antropólogo Hermano Vianna em sua coluna no jornal “O Globo”, sexta-feira passada (íntegra aqui). Tradução: arrastão é uma coisa que não existe e nunca existiu, aquela correria que tanto assusta a classe média, de resto famosa por sua covardia, é só uma manifestação lúdica – a encenação de “conflitos dançantes” de baile funk feita nas areias cariocas. O populismo-cabeça da análise traz embutido o elogio da violência, tanto a simbólica quanto a física, desde que exercida por “despossuídos”: tocar o terror é legítimo e os assaltos são no máximo efeitos colaterais (“quase ninguém roubado”, diz o colunista em outro trecho).
Que nem sempre assaltos e furtos estão no cerne do arrastão é notícia velha. Como registrou corretamente Veja.com no dia 15 de novembro, sobre um tumulto em Ipanema: “Os arrastões são, em sua maioria, mais um resultado do pânico coletivo do que crimes cometidos de fato. Em geral, comprova-se um número baixo de furtos, mas a correria em meio à desinformação, ao longo da faixa de areia, provoca uma reação em cadeia dos banhistas”.
É evidente que estamos no terreno do embate político-ideológico: numa customização realmente ousada do marxismo, Vianna, que tem importantes trabalhos nessa área, parece ter se convencido de que a revolução social começará pelos bailes funk. Mas o elo mais frágil do argumento é a crença em que um fenômeno urbano tão barulhento devesse ficar sem nome (arrastão é o que vingou, poderia ser outro), que nomeá-lo é a verdadeira violência.
Em vez de sair em debandada com seus filhos no colo, imagina-se que os banhistas burgueses devessem sacar câmeras digitais para registrar o espetáculo de uma cultura que se reinventa, abstendo-se, naturalmente, de legendar as fotos. E subi-las correndo para as redes sociais antes que a rapaziada resolvesse aproveitar a confusão para pôr em prática sua filosofia anarquista customizada – aquela que diz que “toda propriedade é roubo”.