Não é para ser esnobe, mas ‘sine nobilitate’ não cola
Esta é uma lenda etimológica importada do inglês, onde também fomos buscar a palavra que ela tenta imaginosamente explicar: snob, presente em português desde o fim do século XIX e aportuguesada como esnobe em meados do XX, teria nascido como forma abreviada do latim sine nobilitate, isto é, “sem nobreza”. A saborosa tese chegou a […]

Esta é uma lenda etimológica importada do inglês, onde também fomos buscar a palavra que ela tenta imaginosamente explicar: snob, presente em português desde o fim do século XIX e aportuguesada como esnobe em meados do XX, teria nascido como forma abreviada do latim sine nobilitate, isto é, “sem nobreza”.
A saborosa tese chegou a ter, entre seus propagadores no Brasil, o jornalista e humorista Apparício Torelly (1895-1971), mais conhecido como Barão de Itararé, que escreveu o seguinte:
A Universidade de Oxford, na Inglaterra, era o estabelecimento de ensino preferido pelos nobres para a educação de seus filhos. Contam que ali havia um professor que fazia uma severa distinção entre os alunos pertencentes à aristocracia e os que descendiam da classe burguesa. Na lista dos alunos, esse professor, para dar o tratamento a cada um, de acordo com a sua origem, costumava escrever, com letra miudinha, depois do nome dos alunos plebeus, esta anotação: “S.nob.”, que era a abreviação das palavras latinas “Sine nobilitate”, isto é, sem nobreza.
Esta é a origem da palavra “snob”, que se emprega em muitos idiomas para qualificar um indivíduo que se quer dar ares de nobre, sem sê-lo.
Tomar o Barão de Itararé como fonte etimológica confiável seria uma piada, claro. Torelly estava no ramo de divertir os leitores, misturando informação com versão fantasiosa e até, em algumas ocasiões, inventando descaradamente suas próprias lendas. Nesse caso, recorreu a uma de grande circulação, que os filólogos da língua inglesa são unânimes em desmentir.
Segundo o dicionário Oxford, a palavra snob surgiu no fim do século XVIII como um termo dialetal de origem obscura. Queria dizer a princípio “sapateiro” e logo se ampliou para abarcar o sentido de “pessoa de baixa posição social”. Só mais tarde, numa nova expansão semântica, surgiria a ideia de “pessoa que procura imitar aquelas de posição social ou econômica superior”, mais próxima do sentido atual que atribuímos a esnobe. Seja como for, o Oxford é categórico ao descartar a tese do sine nobilitate: “O primeiro sentido registrado (sapateiro) não tem relação alguma com isso”.
O dicionário de Douglas Harper conta a mesma história, em linhas gerais, e acrescenta um passo a passo dessa expansão. Surgida em 1781 com o sentido de “sapateiro”, a palavra snob virou gíria de estudantes de Cambridge (nem a universidade Torelly acertou) por volta de 1796, a princípio significando “comerciante local”. Em 1831, tinha ganhado entre os mesmos estudantes uma nova acepção, “pessoa de baixa posição social”, que em 1843 se enriquecia com mais uma volta do parafuso: “pessoa de baixa posição social que imita vulgarmente as de classe superior”.
A carga semântica de snob passou em seguida, segundo Harper, por uma virada curiosa: a origem humilde foi desbotando, enquanto ganhavam destaque os próprios gestos de afirmação de superioridade social, inclusive quando praticados por pessoas de posição social elevada. Em 1911 a palavra era empregada no sentido moderno de “pessoa que despreza aquelas que considera inferiores em posição social, realização ou gosto”.
No entanto, mesmo com tantas e tão precisas informações, ninguém tem a mais pálida ideia de como surgiu lá atrás a palavra snob. Sabe-se apenas que, apesar da semelhança sonora e, se considerarmos a evolução de seu sentido, até semântica, ela também não tem relação com o verbo inglês to snub, este de origem nórdica.
Com o sentido de “tratar com desprezo, ignorar ostensivamente”, snub encontra sua perfeita tradução em português no verbo… esnobar, pois é. Algo que, garantem os sábios, aquele humilde sapateiro do século XVIII nos obriga a aceitar como uma incrível coincidência e nada mais.