Mudança ‘da água para o vinho’ é sempre para melhor?
“Caro Sérgio, numa conversa com minha esposa fui questionado quanto à expressão de mudança ‘da água para o vinho’. Sempre imaginei que isso fosse indicativo de melhora, de efeito construtivo, como alusão às circunstâncias do primeiro milagre de Jesus Cristo. Mas para ela trata-se de mudança pura e simples, independente de seu efeito. Quem tem […]

“Caro Sérgio, numa conversa com minha esposa fui questionado quanto à expressão de mudança ‘da água para o vinho’. Sempre imaginei que isso fosse indicativo de melhora, de efeito construtivo, como alusão às circunstâncias do primeiro milagre de Jesus Cristo. Mas para ela trata-se de mudança pura e simples, independente de seu efeito. Quem tem razão? Um caloroso abraço e parabéns pelo blog.” (Jarbas Sampaio Filho)
No debate entre Jarbas e sua mulher, cada um tem parte da razão.
Sim, a expressão idiomática “mudar da água para o vinho”, encontrada tanto no Brasil quanto em Portugal, tem provavelmente origem no Evangelho de João, o único que contém o episódio das bodas de Caná (acima, na representação do pintor italiano Giotto), em que Jesus transforma água em vinho depois que, numa festa de casamento, este acaba antes da hora.
Sendo assim, entende-se que a expressão tenha nascido para expressar uma transformação radical para melhor, sentido que Jarbas defende e que até hoje me parece dominante: “Nem reconheci o Orelha, está bem vestido, sorridente, até bonito. A Dedé conseguiu mudar aquele ali da água para o vinho”.
Ninguém está dizendo que a água tenha conotação negativa de modo absoluto, é claro. No contexto em que a expressão nasceu, porém, era uma bebida banal, sem valor, e sua transformação milagrosa em vinho salvou a festa.
Ocorre que, com o tempo, o uso costuma provocar alterações – às vezes até da água para o vinho – no sentido de palavras e expressões idiomáticas. Hoje não é raro encontrar “da água para o vinho” empregado por aí para qualificar qualquer mudança radical, substancial, profunda, mas sem juízo de valor: “Depois da primeira hora de exibição, o filme, que até então era uma divertida comédia, muda da água para o vinho e vira uma tragédia perturbadora”.
Não vou me surpreender se um dia descobrirem que essa fuga do sentido original de valoração presente no velho clichê tem algo a ver com o culto da saúde, com o juízo cada vez mais disseminado de que é infinitamente melhor beber água do que vinho.
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