Morte à primeira pessoa do singular! (com pastilhas)
– Noto sua indecisão, que aliás lhe cai tão bem, se me permite dizer. Mas se você decidir fazer este curso, saiba que a primeira lição será precisamente esta: a primeira pessoa do singular não existe. – Como assim? – Não existe. É ilusão. – Eu? Eu não existo? – Não é que você não […]

– Noto sua indecisão, que aliás lhe cai tão bem, se me permite dizer. Mas se você decidir fazer este curso, saiba que a primeira lição será precisamente esta: a primeira pessoa do singular não existe.
– Como assim?
– Não existe. É ilusão.
– Eu? Eu não existo?
– Não é que você não exista. Você existe, evidentemente. E existe com grande propriedade, provocância e formosura, se me permite dizer palavras tão francas. Ah, é óbvio que você existe. O que não existe é o eu.
– Hein?
– O eu. O eu não existe.
– Você não existe?
– Droga, vamos começar tudo de novo?
– Não, espera. Falando sério, quer dizer que a primeira pessoa do singular não existe?
– Evidente que não. A pega que tem uma voz para afirmar tal coisa sobre qualquer criatura, sou, fui, serei, convenhamos, é escorregadia à beça. Isso para dizer o mínimo. Sou isso, sou aquilo, sou aquiloutro? Nem vem que não tem. Quem está dizendo isso? Com base em quê? Influenciado pelo quê? Até que ponto o que fala nele é a própria linguagem? O ser não passa de miragem. O homem que diz: sou, não é. Coisa e tal.
– Entendo. Você está chupando uma pastilha de menta?
– Canela. Mas vamos evitar os pronomes pessoais. Minha boca chupa uma pastilha. Enquanto a sua, se me permite, arfa de forma cada vez mais bizarramente sensual…
– Ah, vamos abolir a primeira pessoa do singular!
– Isso, meu amor! Let’s do it! Viva a primeira pessoa do plural!