Melhor: entre o ‘mais bom’ e o ‘mais bem’
“Sérgio, vou começar por uma dúvida gramatical. É correto usar ‘melhor’ no sentido de ‘mais bem’? Primeiro me parecia óbvio que não. Mas eu comecei a reparar que em certas construções ficaria muito estranho dizer ‘O Flamengo está jogando mais bem que o Vasco’, ou, mais estranho ainda, ‘O Flamengo está jogando bem mais bem […]
“Sérgio, vou começar por uma dúvida gramatical. É correto usar ‘melhor’ no sentido de ‘mais bem’? Primeiro me parecia óbvio que não. Mas eu comecei a reparar que em certas construções ficaria muito estranho dizer ‘O Flamengo está jogando mais bem que o Vasco’, ou, mais estranho ainda, ‘O Flamengo está jogando bem mais bem que o Vasco’. Poderia-se usar o ‘melhor’ nesses casos? Queria que você aproveitasse também para explicar como surgiu essa construção de ‘melhor’ e ‘pior’ como ‘mais bom’ e ‘mais ruim’, que se observa em várias outras línguas, além do português. Obrigado.” (Paulo Hora)
A dúvida de Paulo é compreensível, mas fácil de resolver. Usar melhor com o sentido de “mais bem” não é apenas correto, mas na maioria das vezes obrigatório. O comparativo sintético melhor sempre quer dizer “mais bem” quando é empregado como advérbio (seis acepções no Houaiss), do mesmo modo que sempre quer dizer “mais bom” quando desempenha papel de adjetivo (duas) ou substantivo (quatro).
Alguns exemplos do papel adverbial de melhor, de emprego tão antigo quanto o próprio idioma e comum na língua do dia a dia: “Se você comer melhor e dormir melhor, vai viver melhor”, “Toco violão melhor do que ele”, “Naquele tempo vivíamos melhor com menos dinheiro”. Repare-se que, como advérbio, a palavra é invariável (seria um erro falar que “vivíamos melhores”).
Deve-se atentar também para o fato de que, embora o sentido por trás da palavra seja o de “mais bem”, não se trata de um emprego opcional: seria considerado um equívoco falar que “vivíamos mais bem com menos dinheiro”. Mas há um caso em que o advérbio melhor pode ser substituído por “mais bem”, a critério do falante, como explica o gramático Domingos Paschoal Cegalla: quando é seguido de particípio. Assim, pode-se dizer tanto “Ele está melhor informado do que nós” quanto “Ele está mais bem informado do que nós”.
Neste ponto há divergências entre os sábios. Certos gramáticos conservadores ainda sustentam que a forma sintética é um crime nesses casos, mas a dinâmica da língua insiste em contradizê-los: não é fácil ficar contra uma construção encontrada em clássicos como Camões e Machado de Assis. No entanto, é preciso reconhecer que “mais bem” costuma soar melhor quando o particípio é irregular, como “escrito”, “pago” e “feito” (“um livro mais bem escrito”), e também quando se interpreta “bem informado” (para ficar no exemplo acima) como uma unidade de sentido, ainda que lhe falte o hífen; se este ocorre, como em “bem-humorado”, não se usa “melhor” de jeito nenhum.
Essa é, em linhas gerais, a situação do advérbio. Nos casos em que melhor é adjetivo (e também substantivo), tudo fica mais simples. Seu sentido é o de “mais bom”, construção que, como se sabe, nunca deve ser usada: “Este é o melhor restaurante do bairro”, “Que vença o melhor”.
Quanto à origem, fomos buscar nosso vocábulo melhor, ainda no século XIII, diretamente no latim melior, comparativo de bonus (“bom”), da mesma forma que do par malus, peior derivamos “mau, pior” – nas palavras do gramático Said Ali, “sem outra modificação mais do que a exigida pela diversidade da fonética”. No entanto, o fato de bom e mau terem comparativos sintéticos vai além do latim, ocorrendo também, por exemplo, nas línguas germânicas.
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