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Sobre Palavras

Por Sérgio Rodrigues Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Este blog tira dúvidas dos leitores sobre o português falado no Brasil. Atualizado de segunda a sexta, foge do ranço professoral e persegue o equilíbrio entre o tradicional e o novo.

Machado de Assis, autor de autoajuda

O leitor Roberto Barros me envia a seguinte pergunta: “Está circulando nas redes sociais o post abaixo. Seria mesmo de autoria de Machado de Assis?”. O texto em questão, atribuído a ninguém menos que o maior escritor brasileiro da história, é o seguinte: Você é aquilo que ninguém vê. Uma coleção de histórias, estórias, memórias, […]

Por Sérgio Rodrigues
Atualizado em 5 jun 2024, 09h17 - Publicado em 1 jan 2014, 09h00

machado-auto-ajudaO leitor Roberto Barros me envia a seguinte pergunta: “Está circulando nas redes sociais o post abaixo. Seria mesmo de autoria de Machado de Assis?”. O texto em questão, atribuído a ninguém menos que o maior escritor brasileiro da história, é o seguinte:

Você é aquilo que ninguém vê. Uma coleção de histórias, estórias, memórias, dores, delícias, pecados, bondades, tragédias, sucessos, sentimentos e pensamentos. Se definir é se limitar. Você é um eterno parênteses em aberto, enquanto sua eternidade durar.

A tarefa difícil, aqui, não é descobrir se Machado realmente escreveu as linhas acima. É claro que não, e as evidências são tantas que seria perda de tempo enumerar todas. Mesmo que deixássemos de lado o espírito geral do texto – a psicologia de botequim e o sentimentalismo que fariam espumar o irônico autor de “Memórias póstumas de Brás Cubas” e deixariam vermelho até aquele outro, jovem e romântico, de “Helena” – restariam coisas embaraçosas em bom número: o erro de concordância nominal de “um parênteses”; a liberdade gramatical do pronome oblíquo em início de frase (“se definir”), que só passaria a ter emprego literário no Modernismo; a inadequação vocabular de “estórias”, palavra que Machado nunca usou; o estilo moderno do tratamento, “você é…”, quando a fórmula clássica do cronista era a de falar do leitor na terceira pessoa (“o leitor terá percebido…”), com o romancista se permitindo às vezes a intimidade brincalhona da segunda (“se te agradar, fino leitor…”).

Já se vê que estamos diante de mais uma travessura daquele golpista internético manjado, o escrevinhador anônimo que prega uma assinatura ilustre no rabo de seu textinho para garantir que ele ganhe o mundo nas asas da ignorância, da ingenuidade, da distração, da pressa, do culto à celebridade. Assim nascem Verissimos escatológicos, Millôres obtusos, Saramagos piegas e outros monstros. Faz anos que isso existe e faz anos que dá certo.

Desmascarada a falsa autoria, chegamos à parte realmente difícil da nossa tarefa: entender como é possível que, depois de passar anos dando voltas de blog em blog (a ocorrência mais antiga que encontrei no Google é de 2009) até aparecer semana passada na página Trecho de Livros, do Facebook (aqui), o exemplar de “autoajuda machadiana” tenha sido ali – até o fechamento desta edição – curtido por 1.475 pessoas e compartilhado por 3.327, sem, ao que se saiba, ser questionado por ninguém. “Nossa muito lindo mesmo, só podia ser Machado de Assis”, escreveu uma comentarista. O que significa isso? Não sei bem, mas o referido perfil tem uma epígrafe que faz pensar: “Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não leem”.

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Em meu livro “What língua is esta?” (Ediouro), de 2005, há um artigo chamado Drummond, o semianalfabeto, em que comento o poema horroroso que tinha recebido de um conhecido numa corrente de e-mail. Assinava-o Carlos Drummond de Andrade. Eu dizia o seguinte: “O que me incomodou profundamente no episódio do poema de ‘Drummond’ foi o fato de seu remetente ser um sujeito inteligente, esclarecido e vivido, jornalista na faixa dos 40 anos, consumidor de uma dieta de livros muitas vezes superior à média nacional. Pois tal membro da rarefeita elite cultural brasileira recebeu o spam espúrio e o repassou a uma longa lista de conhecidos, aparentemente sem ter tido nem meio segundo de dúvida sobre a autenticidade daquele ‘Drummond’. Isso sim é deprimente”.

Pois é. Os anos se passaram e – esta é a versão otimista – ainda estamos no mesmo lugar.

Publicado em 2/6/2013.

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