Humor: com religião se brinca, é claro
‘Cem chibatadas se você não estiver morto de rir’ O humor – o velho, o jovem, o imortal humor – foi ferido esta semana em Paris. Sangrou profusamente dos tiros que levou quarta-feira na redação da “Charlie Hebdo” e continuou a sangrar desde então com os golpes daqueles que, bem ou mal intencionados, encontraram uma […]

O humor – o velho, o jovem, o imortal humor – foi ferido esta semana em Paris. Sangrou profusamente dos tiros que levou quarta-feira na redação da “Charlie Hebdo” e continuou a sangrar desde então com os golpes daqueles que, bem ou mal intencionados, encontraram uma justificativa para o atentado na virulência dos satiristas franceses: “Também, quem mandou mexer com Maomé? Com religião não se brinca”.
Errado. Não se trata apenas de dizer que esse raciocínio criminaliza de forma torpe as vítimas – como aqueles outros, infelizmente corriqueiros no Brasil, que atribuem a responsabilidade pelo estupro à minissaia da moça e a culpa pelo espancamento do casal gay ao fato de eles estarem de mãos dadas na rua.
Mais do que poder ser satirizada, a religião – qualquer religião – deve, precisa, tem que ser satirizada. Isso vale para qualquer área em que o fanatismo, a arrogância, a desumanização e a estupidez se infiltrem de modo sistemático. A política está no mesmo caso, o esporte também. Se começarmos a abrir exceções não pararemos mais.
Estamos falando de um princípio. Ninguém é obrigado a ser leitor da “Charlie Hebdo” ou mesmo simpatizar com sua linha editorial anarquista para reconhecer seu direito de ser o que é. O político Daniel Cohn-Bendit, entrevistado ontem na “Folha de S.Paulo”, expôs assim a questão: “Estavam convencidos de que a liberdade de expressão é atacar de Cristo a Maomé. Era a concepção de liberdade deles. Pode-se achar isso babaca ou bom. Mas é parte do jogo. Uma sociedade livre é justamente aquela que suporta o excesso”.
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E para encerrar com um pouco de etimologia: pode parecer piada, mas a palavra “humor”, vinda do latim humor, nasceu como termo médico e assim chegou ao português, no século XIII. Na Antiguidade e na Idade Média o humor era apenas – como em acepção pouco corrente ainda é – um sinônimo de “fluido corporal”.
Acreditava-se então que o organismo humano fosse regido por quatro humores: sangue, bile amarela, fleuma e bile negra. Estes deviam ser bem balanceados para que a pessoa não se tornasse, pendendo para um deles, sanguínea, colérica, apática ou melancólica – respectivamente.
Foi no inglês, entre os séculos XVI e XVII, que a palavra ganhou uma primeira ampliação semântica: indo da causa ao efeito, humor passou a significar temperamento, disposição, estado de ânimo.
Em seguida, num processo de incorporação do sentido positivo – semelhante ao que tornou “qualidade” um sinônimo de “boa qualidade” –, humor ganhou o significado moderno de “bom humor”, ou seja, boa disposição, estado de ânimo alegre, e daí o de propensão ao riso, comicidade.