Hermético como Hermes – ou como um ministro do STF
Representação medieval de Hermes Trismegisto O adjetivo hermético (do latim hermeticus) tem origem na cultura clássica, mas, ao contrário do discurso dos ministros do Supremo Tribunal Federal, não é hermético. Basta ter um domínio vocabular básico para entender que ele significa “fechado de modo a impedir a entrada do ar; selado” ou “difícil de entender […]

O adjetivo hermético (do latim hermeticus) tem origem na cultura clássica, mas, ao contrário do discurso dos ministros do Supremo Tribunal Federal, não é hermético. Basta ter um domínio vocabular básico para entender que ele significa “fechado de modo a impedir a entrada do ar; selado” ou “difícil de entender e/ou interpretar; obscuro, ininteligível” (Houaiss) – as duas acepções mais comuns dessa palavra existente na língua portuguesa desde o início do século 18.
O modo exato em que esses dois sentidos se relacionam, aí sim, tem algo de hermético. Mas primeiro vamos dar uma olhada na curiosíssima origem da palavra.
Por trás de hermético há um nome próprio, um nome da mitologia grega: Hermes, que na tradição romana era chamado de Mercúrio, mensageiro dos deuses, patrono das comunicações, da magia, do comércio e dos ladrões. Hermético é aquilo que diz respeito a Hermes, só que não exatamente: há aí um drible etimológico, pois a palavra, nas acepções que vêm ao caso aqui, nunca fez referência ao próprio Hermes, o deus de pés alados, e sim a uma figura interessantíssima chamada Hermes Trismegisto, que em grego queria dizer “Hermes três vezes grande”.
Já se acreditou que Hermes Trismegisto fosse um filósofo egípcio de verdade, de biografia envolta em bruma por ser tão antigo quanto sábio. Isso foi antes do consenso de que também ele é um personagem mitológico, provavelmente fruto do sincretismo greco-egípcio, fusão de Hermes com o deus Thot. As obras atribuídas a Trismegisto, de conteúdo místico, exerceram enorme influência sobre teólogos, alquimistas e filósofos da Idade Média ao Iluminismo – e mesmo além.
Agora vem a parte obscura dessa história. Atribui-se a Trismegisto a invenção de um selo prodigioso que os alquimistas usavam para vedar recipientes, “fechadura perfeita que se obtinha fundindo juntas as beiras do vaso e da trompa”, nas palavras de Antenor Nascentes, que nesse ponto concorda com etimologistas do mundo inteiro. Isso leva a maioria dos estudiosos a supor, como faz o Houaiss, que a acepção de “ininteligível, impenetrável” é figurada, isto é, surgida por extensão metafórica: um discurso seria hermético por não permitir que nele penetre o leitor ou ouvinte, exatamente como os recipientes hermeticamente fechados mantêm o ar do lado de fora.
A explicação soa bem, mas deixa de levar em conta uma evidência singela: os textos e ensinamentos atribuídos a Hermes Trismegisto, também conhecidos como herméticos, eram eles mesmos de difícil compreensão pelos não iniciados. A extensão metafórica parece simplesmente desnecessária, portanto, para dar conta da segunda acepção da palavra. A hipótese de que ambos os sentidos tenham caminhado lado a lado, um reforçando o outro, não deve ser descartada.