Flaubert e a vaidade
‘Flaubert dissecando madame Bovary’, ilustração de J. Lemot (1869) Gustave Flaubert, o autor de Madame Bovary, declarou-se certa vez convicto de que “a vaidade é a base de tudo, e no fim das contas o que chamamos de consciência é apenas a vaidade interior”. No caso do próprio Flaubert, a frase parece fazer sentido, mas […]

Gustave Flaubert, o autor de Madame Bovary, declarou-se certa vez convicto de que “a vaidade é a base de tudo, e no fim das contas o que chamamos de consciência é apenas a vaidade interior”. No caso do próprio Flaubert, a frase parece fazer sentido, mas fará sempre? Em outras palavras, que “tudo” sustentado pela vaidade era esse ao qual se referia o grande escritor?
À primeira vista, o tudo de Flaubert é tudo mesmo, a própria existência humana. Ou seja: se a vaidade é a base de tudo, decorre daí que sem uma dose de narcisismo ninguém se levantaria da cama, ninguém daria bom dia ao vizinho, ninguém ia querer trabalhar, construir, criar filhos, sonhar. Provável até que ninguém chegasse sequer a se constituir propriamente como pessoa.
Não, Flaubert não é um psicólogo, embora tenha escrito um livro chamado “A educação sentimental”. É só um escritor que muitos críticos consideram o mais influente de seu tempo. Estamos falando do tempo, a segunda metade do século 19, que criou a forma mais madura do romance burguês. Que criou, portanto, a gramática do discurso indireto livre que até hoje, tendo resistido aos assaltos revolucionários ou reformistas do modernismo, estrutura as ideias básicas que nós, leitores, temos sobre personagem, cena, ritmo narrativo, descrição, ação, introspecção.
Quando chama a consciência de “vaidade interior”, numa imagem bela, Flaubert está produzindo algo que talvez não passe de uma metáfora intrigante no que diz respeito à compreensão da natureza humana, mas que é de precisão cirúrgica quanto à compreensão do simulacro de natureza humana que se constrói no romance. E quem, a esta altura, negaria que uma coisa já não existe sem a outra?
Escritores não são necessariamente sábios. Margaret Atwood chegou a dizer que eles escrevem justamente por entender menos do que as outras pessoas sobre os meandros da mente. Sua única sabedoria, como não ignorava Flaubert, também é uma forma de vaidade: editar o discurso sobre o mundo de tal forma que o mundo, vaidoso, acredite estar sendo retratado e não inventado ali mesmo, entre vírgulas e substantivos concretos.