‘Fazer que’ ou ‘fazer com que’?
“As regras para uso de preposição antes do ‘que’ sempre me pareceram simples. Usamos a preposição que o verbo pedir (se pedir). Mas, recentemente, passei a reparar em um caso que estaria errado segundo essa regra, mas é usado em qualquer texto mais formal. Exemplo: ‘Eu gosto de usar a internet, o que faz COM […]
“As regras para uso de preposição antes do ‘que’ sempre me pareceram simples. Usamos a preposição que o verbo pedir (se pedir). Mas, recentemente, passei a reparar em um caso que estaria errado segundo essa regra, mas é usado em qualquer texto mais formal. Exemplo: ‘Eu gosto de usar a internet, o que faz COM que eu passe muito tempo em frente ao computador’. Não tenho dúvida de que o verbo ‘fazer’ é transitivo direto. Mas, então, de onde viria esse ‘com’? Quando tenho que escrever e me deparo com o caso, eu fico tentado a seguir a regra, mas fico com medo de estar errado ou de que quem vai ler ache que está errado.” (Paulo Hora)
A dúvida de Paulo é excelente e aponta para algo que, ao gosto do freguês, pode ser considerado uma complicação ou uma sutileza, uma anomalia ou uma riqueza de nosso idioma (é tudo isso ao mesmo tempo, claro). Estamos falando da preposição que, empregada depois de certos verbos transitivos diretos, “mais serve para lhes acrescentar um novo matiz de sentido do que reger o complemento desses mesmos verbos”, nas palavras de Evanildo Bechara em sua “Moderna gramática portuguesa”.
Vamos voltar alguns passos para deixar isso mais claro. A regra geral, como se sabe, é que só se emprega preposição após um verbo transitivo indireto: “Conto com sua ajuda” está neste caso, mas “Peço sua ajuda”, com seu verbo transitivo direto, não. “Confio em meus colegas” exige preposição, mas “Chamei meus colegas”, não. Até aqui não há mistério.
A situação começa a se complicar naqueles casos, não tão incomuns, em que o objeto direto aparece preposicionado. Isso pode ocorrer devido à opção estilística de pô-lo em destaque (“Amar a Deus”), à eliminação de uma ambiguidade (“Trata o empregado como a uma criança”), ou ainda – o único desses casos em que a preposição é realmente obrigatória na norma culta – quando o objeto direto é um pronome oblíquo tônico: “É só a ti que eu amo”.
Estamos vendo, portanto, que objetos diretos não são incompatíveis com preposições. Ocorre que, embora traga um objeto direto preposicionado, a construção mencionada pelo leitor não se encaixa bem em nenhum dos casos do parágrafo anterior. Em “fazer com que”, a função da preposição, como diz Bechara, é menos de regência que de modulação semântica: em contraste com os exemplos acima, tem impacto no sentido do verbo. Trata-se de um recurso expressivo que a língua põe à disposição do falante.
Em outras palavras, “fazer que” também está certo, mas não quer dizer exatamente a mesma coisa. A interpretação consagrada pelos gramáticos é a de que neste caso o com enfatiza o esforço empregado pelo sujeito da ação. Eu não excluiria também, ainda que secundariamente, uma razão de ritmo e eufonia. “A internet faz que eu passe muito tempo em frente ao computador” pode ser gramaticalmente correto, mas não soa lá muito bem.
O filólogo brasileiro Antenor Nascentes propôs para preposições desse tipo o nome de posvérbio. Outros exemplos citados por Bechara são “cumprir com o dever”, construção em que a preposição “acentua a ideia de zelo ou boa vontade para executar algo”, e “arrancar da espada”, com o de enfatizando “a ideia de uso do objeto”.
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