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Sobre Palavras

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Este blog tira dúvidas dos leitores sobre o português falado no Brasil. Atualizado de segunda a sexta, foge do ranço professoral e persegue o equilíbrio entre o tradicional e o novo.

Epifania

Abel, um ex-empresário corrupto e corruptor que abandonou o estresse da vida moderna para criar galinhas num sítio em Bichinho, acordou feliz e revitalizado na primeira manhã de sua nova existência. Antes de assar o pão, saiu de casa cumprimentando bichos, árvores e terra. “Ah! Os caminhos sábios do verme! Que felicidade o homem olhar […]

Por Sérgio Rodrigues
Atualizado em 31 jul 2020, 02h09 - Publicado em 8 fev 2015, 09h00

Abel, um ex-empresário corrupto e corruptor que abandonou o estresse da vida moderna para criar galinhas num sítio em Bichinho, acordou feliz e revitalizado na primeira manhã de sua nova existência. Antes de assar o pão, saiu de casa cumprimentando bichos, árvores e terra.

“Ah! Os caminhos sábios do verme! Que felicidade o homem olhar de frente a testa do mundo enquanto cofia os bigodes imensos da Natureza e se perde, apenas se perde na corrente, folha solta, pedrinha colorida de dominó, indo, indo sempre, para onde? Que importa para onde? Apenas ir, seguir quebrando vidraças, rompendo círculos de fogo, queimadura e cicatriz, corte e atalho, virando do avesso abismos de escuridão profunda e tirando luz das entranhas a golpes de unha, sim, sem medo. Ah! O destino incomensurável do homem e de todas as coisas existentes! Ah! Ah! O mistério absolutamente despido de espelhos e truques, o mistério de um mágico morto, de um peixe fictício, o mistério total, eis o que nos cerca!”

Assim pensava Abel enquanto caminhava descalço à margem do riacho. A lama fresca brotava entre seus artelhos, acariciante como um sinal dos céus. Foi assim que ele entendeu: uma mensagem. Sim, estava feliz – por quê, não saberia dizer, nem tentava. Colheu uma laranja e aproximou-a de um dos enormes espinhos no tronco da laranjeira.

“Quem precisa de faca, tecnologia de fundição, ou mesmo de pedra polida?”, pensou Abel. Habilidoso, extraiu a casca golpeando a fruta contra o espinho e pôs a laranja inteira na boca.

Sim, feliz. Apenas isso. De boca cheia.

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A laranja era saborosa, mas ácida. Talvez tenha sido a força adstringente de seu sumo a retorcer ligeiramente o esôfago, ou quem sabe foi a própria felicidade que, entorpecendo a musculatura lisa de Abel, desatou a trama. Seja como for, uma gota de suco meteu-se por via indesejada, ligeiro espasmo, santo Deus…

Tarde demais. Sentiu seu aparelho respiratório ser arremessado para a frente com a força de uma pedrada. Sob a laranjeira abençoada, à margem do riacho sussurrante, seu corpo dobrou-se e ele cuspiu chamas. O impacto foi tão forte que as pernas cederam e ele caiu, primeiro de joelhos, logo de borco. Parecia um animal agonizante, rosto mergulhado no barro, corpo tomado de contorções cruéis no fluxo da tosse.

“Já vai passar, já vai passar”, pensava, histérico, nos breves intervalos de lucidez entre um acesso e outro. O importante era ter calma, respirar fundo… Mas logo se anunciava outra torrente, seus olhos vidravam de pânico, os dedos se enterravam na lama, nada disso detinha a catapulta em seu peito e ele tossia, tossia. Em breve estava vomitando.

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O primeiro jato tingiu de verde a poça de lama em que ele chafurdava. O segundo foi mais difícil: parecia obrado com mais esforço, fez-se preceder de uma violenta dilatação da traqueia e de uma pressão que vinha subindo e se alargando, começando no estômago para em instantes tomar sua cabeça e inflá-la como uma bola de futebol no limite da ruptura.

Quando enfim o vômito veio, Abel estava de olhos estatelados contra a lama. Não viu que o líquido que lhe jorrava do interior, de um roxo profundo e brilhante, formou um laguinho onde boiavam fragmentos da parede estomacal, retalhos grotescos de tecidos musculares não identificados e restos de repolho com linguiça, sua refeição da noite anterior. O fedor era insuportável. Os gritos de Abel, os de um bicho submetido à mais desumana das torturas.

Já não era um corpo o que se debatia na poça fétida embaixo da laranjeira, ao lado do riacho: o que era aquilo? Um monte de dor, um fiapo de consciência. Abel mordeu o barro, tentando pateticamente fazer com ele uma rolha que detivesse a caudalosa torrente em que se transformara. Seu tronco se arqueou, tenso, antes de socar o chão com a força de oitocentos cavalos dementes, espirrando a gosma roxa nas folhas da laranjeira, maculando as águas cristalinas do riacho.

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Então Abel pensou seu último pensamento:

“Ah! Os bigodes da Natureza! Ah! Ser homem, seguir, amar, dar, receber! O mistério! Sim, sim, agora compreendo! Aach! Irrrgh! Bluaaahhh…!”

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