‘Entre eu e eles’ ou ‘entre mim e eles’?
“Li no site de um filósofo de que gosto muito a seguinte oração: ‘A diferença entre eu e os meus companheiros de geração é a seguinte: eu percebi isso e eles não’. A colocação do pronome reto após uma preposição está certa ou errada? Eu aprendi que não se deve fazer isso com a tia […]
“Li no site de um filósofo de que gosto muito a seguinte oração: ‘A diferença entre eu e os meus companheiros de geração é a seguinte: eu percebi isso e eles não’. A colocação do pronome reto após uma preposição está certa ou errada? Eu aprendi que não se deve fazer isso com a tia Cocota… mas agora fiquei em dúvida por se tratar de um texto escrito por uma pessoa com alguns livros publicados.” (Willian Cardoso)
A consulta de Willian nos remete ao capítulo dos pronomes, sem dúvida o mais conturbado da narrativa sempre tensa que tem como adversários o português vivo – isto é, aquele que se fala e se escreve no dia a dia – e a língua que gerações de sábios, baseados nos chamados “autores clássicos”, decidiram fixar como modelo.
Segundo a tradição normativa, o filósofo citado por Willian cometeu um erro – simples assim. O problema não é o pronome pessoal vir depois de uma preposição, como observa o leitor: em uma construção como “para eu fazer”, a forma reta após a preposição é considerada obrigatória. No entanto, por não desempenhar papel nem de sujeito nem de predicativo, o pronome da frase em questão deveria ser oblíquo, de acordo com a fria letra da lei: “A diferença entre mim e os meus companheiros de geração…”.
Caso encerrado? Não tão depressa. Ocorre que a fria letra da lei vem derretendo faz tempo. Já nos anos 1950 o filólogo Silveira Bueno defendia tal uso como “radicalmente português”, isto é, fiel ao espírito profundo do idioma:
Proíbe-se, no português clássico e moderno, que se empreguem as formas retas dos pronomes pessoais em função complementar (…). Tal proibição, que é dogma da gramática e do ensino oficial tanto em Portugal como no Brasil, encontra numerosas exceções no português arcaico e, em nossa pátria, é de todo transgredida na língua familiar e viva da sociedade.
Parece bem claro que vivemos uma fase de transição. Embora continue recomendável seguir o velho mandamento para não perder ponto em provas, a norma culta contemporânea tem, pelo menos no caso do português brasileiro, se encarregado de torná-la cada vez mais artificial.
O gramático Evanildo Bechara, da Academia Brasileira de Letras, que não pode ser chamado de revolucionário, admite – com a ressalva de que não se trata da “língua exemplar” – o uso do pronome pessoal reto “em coordenações de pronomes ou com um substantivo introduzidos pela preposição entre: entre eu e tu; entre eu e o aluno, entre José e eu”. Ou seja, exatamente o caso da frase citada por Willian.
Reconhece Bechara: “Um exemplo como Entre José e mim dificilmente sairia hoje da pena de um escritor moderno”. Parece razoável concluir que o ilustre acadêmico absolveria nosso autor anônimo.
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