Enquanto lavo o alface
Falando outro dia sobre o gênero do substantivo dengue, a doença, que para a maioria dos gramáticos é feminino e para outros, dissidentes, masculino, me lembrei do caso do alface. Isso mesmo, o alface, embora alface seja, como se sabe, um substantivo do gênero feminino. Tudo começou com uma professora de português que eu tive […]
Falando outro dia sobre o gênero do substantivo dengue, a doença, que para a maioria dos gramáticos é feminino e para outros, dissidentes, masculino, me lembrei do caso do alface. Isso mesmo, o alface, embora alface seja, como se sabe, um substantivo do gênero feminino. Tudo começou com uma professora de português que eu tive na infância chamada, se não me engano, Maria Inês.
O cólera, o grama, todas essas pegadinhas da língua estavam na moda entre os alunos. Ah, então cólera parece feminino mas é masculino, grama também, que coisa hein? O português gosta mesmo de inverter. Açúcar também parece que é a e é o.
Daí para o alface foi um pulo. Lembro-me de sentimentos estranhos quando descobri que, como eu suspeitava, a maioria das saladas inclui a alface e não o alface. Dona Maria Inês estava errada ao rispidamente corrigir – ou pensar que corrigia – uma das minhas colegas.
– É o alface, entendeu? Como o grama, o cólera… O presidente, o palácio, o pé-de-moleque, o alface.
Num transe, a professora não tinha a menor ideia de como era infundada a sua cólera (irritação). Mais tarde eu soube que ela não era a única a acreditar no gênero masculino de alface. Como explicar essa ilusão coletiva? Talvez por algo revelador de certas matusquelices do Brasil: nossa mania de achar que, como no caso do grama que vira a grama no balcão da padaria, se todo mundo fala é porque está errado, uma vez que o uso corrente em nosso país inculto é sempre contrário à boa norma. Um impulso de hipercorreção que acaba em desastre.
Materializado naquela velha sala de aula, na voz de dona Maria Inês, porém, o alface me deu não só aquela leve vertigem que nos acomete diante da autoridade oca, mas também uma enorme vontade de rir. Rir da liberdade infinita inaugurada por professores que erram, claro, mas rir também do ridículo que havia na mais burra modalidade de arrogância: aquela que prega o elitismo sem sequer fazer jus a ele.