‘Em pleno Belo Horizonte’ ou ‘em plena Belo Horizonte’?
“Olá, Sérgio! Ao escrever um texto, redigi a seguinte frase: ‘A equipe se encontrava altiva em pleno Belo Horizonte’. Ao repassar a crônica para um colega e amigo meu, recebi uma única crítica, qual seja a utilização de ‘pleno’ em vez de ‘plena’, pois ele considerou que a silepse de gênero – para este caso, […]

“Olá, Sérgio! Ao escrever um texto, redigi a seguinte frase: ‘A equipe se encontrava altiva em pleno Belo Horizonte’. Ao repassar a crônica para um colega e amigo meu, recebi uma única crítica, qual seja a utilização de ‘pleno’ em vez de ‘plena’, pois ele considerou que a silepse de gênero – para este caso, quando se trata de cidade – é obrigatória. Ao realizar uma breve pesquisa, não pude ter certeza da obrigatoriedade dessa concordância irregular, porquanto há muitas manifestações contraditórias. Percebi, sim, que a silepse de gênero, para esses casos, é bastante utilizada, o que não necessariamente dá razão ao meu colega. A questão, repito, é se há obrigatoriedade em subentender a expressão ‘cidade’ ou se o interlocutor possui a faculdade de concordar regularmente o adjetivo com o gênero masculino da respectiva cidade (ex: Porto Alegre, Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro). Julgo que não há pessoa melhor para resolver este impasse do que o senhor. Agradeço desde já a eventual solução!” (Marcos Vinícios Jobim)
A consulta de Jobim nos lança num terreno tão fascinante quanto escorregadio: que gênero atribuir – uma vez que o português não herdou do latim o gênero neutro, resolvendo tudo na base do masculino x feminino – a palavras que normalmente não têm gênero explícito, como são os nomes de cidades?
Esse “normalmente” do parágrafo anterior deixa claro que há exceções. Sim, algumas cidades, poucas, têm gênero claramente definido, facilitando o trabalho de concordância. São reconhecíveis com facilidade por virem acompanhadas de artigo: o Rio de Janeiro, o Porto (em Portugal), o Cairo (no Egito) e a Beira (em Moçambique) são algumas delas.
O caso de Recife é flutuante: a capital pernambucana pode engrossar a lista das cidades que levam artigo, “o Recife”, se adotarmos o uso feito por seus próprios moradores; ou não, caso se leve em conta a preferência de falantes de outras regiões do país. O mais correto é aceitar as duas formas.
Ocorre que nessas questões o uso é tudo: não nos leva muito longe procurar leis gramaticais universais. Sim, é verdade que os nomes que se fazem acompanhar de artigo costumam ter em sua origem substantivos comuns: o Rio/o rio, o Porto/o porto… Tudo bem, mas nem por isso alguém viaja ao Porto Alegre ou ao Ouro Preto, viaja? Se há uma lei, ela só pode ser esta: levam artigo as cidades que gerações de falantes decidiram, por qualquer motivo, que levam artigo – ponto.
Sabe-se que a capital mineira, que motivou a consulta, não está nesse caso: dizemos que alguém mora em Belo Horizonte. Como na imensa maioria das cidades, há aqui uma espécie de indefinição de gênero, um vácuo que a gramática trata de preencher com a boa e velha concordância ideológica. O gênero de Belo Horizonte é feminino, como observou o colega de Jobim, por ficar subentendida a palavra “cidade”. A construção correta, portanto, é “em plena Belo Horizonte” – e sim, isso é obrigatório. O mesmo vale para “a grande São Paulo”, “a dinâmica Campo Grande” etc.
É importante notar que não importa se as palavras que compõem o nome da cidade (campo, horizonte, porto, santo) são masculinas na origem. Ao se tornarem topônimos, formam uma nova unidade de sentido e passam a obedecer a uma nova lógica. Nem me parece ser este um caso clássico de silepse, na verdade, pois não há propriamente alteração de gênero e sim a atribuição de um a termos que, em si, aspiram à neutralidade. O estado confere a São Paulo o gênero masculino, enquanto a cidade lhe empresta o feminino. A cidade californiana dá gênero feminino a São Francisco, mas o grande rio brasileiro lhe restitui o masculino. A concordância vai depender do sentido maior.
E quando houver suspeita de que essa regra provoca um problema de eufonia – como, sei lá, em “a hospitaleira Governador Valadares” – recomenda-se partir para o desdobramento da ideia e escrever “a hospitaleira cidade de Governador Valadares”.
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