É possível falar em ‘rescaldo do temporal’?
“Caro professor! As ‘manchetes’dos telejornais matam língua a pátria e isso já faz tempo, pois é comum vermos chamadas que são mais interessantes do que a própria reportagem. No Hora Um de 20/03, por exemplo, a chamada dizia ‘Rescaldo do temporal’. Rescaldo está relacionado a incêndio/fogo, não é mesmo? Até é possível entender o termo […]

“Caro professor! As ‘manchetes’dos telejornais matam língua a pátria e isso já faz tempo, pois é comum vermos chamadas que são mais interessantes do que a própria reportagem. No Hora Um de 20/03, por exemplo, a chamada dizia ‘Rescaldo do temporal’. Rescaldo está relacionado a incêndio/fogo, não é mesmo? Até é possível entender o termo naquela circunstância (arrumar/organizar o que foi danificado pelas águas), mas fica muito forçado, não é mesmo? Abraços.” (Aires Bruno Ramos)
Sim, fica forçado falar em “rescaldo do temporal”. O caso guarda semelhança com o que comentei aqui há três meses – motivado por uma consulta do mesmo Aires, que vai se revelando um especialista nesse tópico –, quando o governador do Rio de Janeiro, Pezão, chamou de “tormenta” a falta de água.
“Rescaldo” é um termo que importamos no século XVI do espanhol rescaldo, que, derivado do adjetivo arcaico caldo, “quente”, tinha o sentido original de “cinzas ainda ardentes” – conservado na acepção que o Houaiss traduz como “cinza que contém brasa”.
É verdade que, como observa o próprio Aires, o sentido da palavra já foi além do pós-incêndio, estendendo-se para um genérico “resultado de alguma coisa; saldo” (Houaiss de novo). Ampliações semânticas desse tipo são legítimas e poderiam, no teste do dicionário, servir de álibi para um uso pouco ortodoxo como o do telejornal citado acima.
Ocorre apenas que, mais do que mobilizar um sentido figurado, esse “rescaldo do temporal” – como a “tormenta” do governador fluminense – soa especialmente desajeitado por lançar a palavra num contexto que é o oposto perfeito de seu sentido original: em vez de fogo, água (e em vez de tempestade, seca, no caso de Pezão).
Chamar tal emprego de erro seria um exagero, pela razão já exposta, mas ambos são casos de imprecisão vocabular.
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