Dinheiro não compra talento, mas talento já foi dinheiro
As palavras têm um raro talento para se reinventar, como prova a história da própria palavra talento. Na língua de hoje, como se sabe, talento quer dizer em primeiro lugar – e quase exclusivamente – aptidão, dom, habilidade, capacidade (geralmente inata, embora possa ser aprimorada) para realizar algo que apresente um expressivo grau de dificuldade […]
As palavras têm um raro talento para se reinventar, como prova a história da própria palavra talento.
Na língua de hoje, como se sabe, talento quer dizer em primeiro lugar – e quase exclusivamente – aptidão, dom, habilidade, capacidade (geralmente inata, embora possa ser aprimorada) para realizar algo que apresente um expressivo grau de dificuldade para a média das pessoas.
Esse sentido é relativamente recente: surgiu no latim medieval e data do século 14 em inglês e do 17 em português. Antes disso, talento era uma medida de peso e uma (vultosa) medida monetária.
A acepção mais clássica de talento era medida de peso. Usada no Egito, na Babilônia, em Israel, na Grécia e em Roma, aparece como kikkor no texto hebraico da Bíblia, termo que, segundo o Webster’s etimológico, foi traduzido para o grego como talanton (“balança”). A medida era variável de lugar para lugar e ao longo do tempo, acredita-se que oscilando entre 20 e 40 quilos.
No grego e no latim, da medida de peso brotou o sentido monetário: “Barra, certo peso d’uma matéria preciosa” é a primeira acepção do latim talentum que aparece no dicionário Saraiva. Que um talento era uma pequena fortuna ninguém discute, mas seu valor monetário preciso é incerto. Há registros de que um talanton grego equivalia a 6 mil dracmas numa época em que o soldo de um militar era uma dracma por dia. Foi o dinheiro que, por figuração, deu origem ao significado de talento hoje dominante.
A passagem da grana à aptidão pode parecer contraditória. Pois o talento não é justamente um tipo de riqueza que o dinheiro não consegue comprar? Não esbarramos o tempo todo em ricos sem talento e em pobres talentosíssimos? A ligação entre os dois sentidos se deu por meio da ideia de dote, presente – no caso, de Deus. Um dom que o agraciado tem não apenas o direito, mas o dever de empregar bem, sob pena de vê-lo revogado e enfrentar severos castigos.
Acredita-se que o espalhamento dessa acepção se deu a partir da popularidade de uma interpretação da “parábola dos talentos”, contada pelo evangelista Mateus. Trata-se da história de um senhor de terras que presenteia três servos com somas variáveis de talentos. Após algum tempo, descobre que dois duplicaram sua riqueza, enquanto o terceiro, que preferiu enterrar o dinheiro, está na mesma. O senhor então lhe confisca o presente e o expulsa de suas terras.