Despauté-Rio
Das palavras disponíveis em nossa língua para nomear o assombro diante do que não faz sentido, de tudo aquilo que não pode – ou não deveria poder – ser, sempre tive uma quedinha especial por despautério. É o substantivo masculino despautério, nascido no século 19, que me vem primeiro à cabeça quando três prédios inteiros […]
Das palavras disponíveis em nossa língua para nomear o assombro diante do que não faz sentido, de tudo aquilo que não pode – ou não deveria poder – ser, sempre tive uma quedinha especial por despautério.
É o substantivo masculino despautério, nascido no século 19, que me vem primeiro à cabeça quando três prédios inteiros – um deles de vinte andares – viram pó de um minuto para o outro numa área nobre do centro da minha cidade, ao lado do Teatro Municipal.
A palavra presta dúbia homenagem a um velho gramático flamengo, Despautère (Despauterius em latim), muito popular na Europa nos séculos 16 e 17, que no entanto passou à história com a fama de confuso e dado a espalhar asneiras.
Quando o absurdo é apenas dito, o despautério vira sinônimo de tolice, dislate, besteira, no espírito da referência original ao tal filólogo. Mas é em sua acepção figurada – quando o absurdo que nomeia é um fato, um desatino não mais de julgamento individual, mas impregnado no próprio tecido do mundo – que despautério ganha mais força expressiva.
No entanto, é recurso que se deve usar com parcimônia. Como tudo que se banaliza, o assombro invocado por despautério tende a perder potência quando muito repetido. Edifícios que esfarelam, bueiros explosivos, turistas que despencam do bondinho pelo buraco na grade sobre o abismo, ônibus que ignoram sinais vermelhos, caipirinhas a R$ 20,00 em qualquer biboca, imóveis mais caros que em Manhattan ou Paris. Despauté-Rio.
Tem horas que só partindo para a invenção.