De onde veio a expressão ‘gatos pingados’?
Gato, personagem de Laerte: perseguido “Gostaria de saber a origem da expressão gatos pingados, que usamos para falar que tem poucas pessoas em um local.” (Marcos Faria Cordeiro) Continua após a publicidade A origem de expressões populares como “gato pingado” (que alguns dicionaristas registram como palavra composta, gato-pingado) costuma ser nebulosa. Justamente por nascerem na […]

“Gostaria de saber a origem da expressão gatos pingados, que usamos para falar que tem poucas pessoas em um local.” (Marcos Faria Cordeiro)
A origem de expressões populares como “gato pingado” (que alguns dicionaristas registram como palavra composta, gato-pingado) costuma ser nebulosa. Justamente por nascerem na língua do povo, é comum que esses ditos permaneçam um longo tempo sem registro por escrito, até estarem consolidados como uma nova unidade de sentido – e a essa altura o elo entre os elementos que engendrou o novo sentido já empalideceu ou foi inteiramente esquecido.
Ao tentar reconstituir os passos que construíram o sentido atual de uma expressão popular sem o auxílio de documentos históricos, entramos necessariamente no terreno das hipóteses. Aqui o bom senso costuma ser nosso guia mais confiável. Se o perdemos de vista, corremos o risco de abraçar teorias fantasiosas como esta que circula na internet (citada até pelo sério site lusitano Ciberdúvidas da Língua Portuguesa) sobre gato-pingado:
No Japão existiria uma tortura que consistia em despejar pingos de óleo fervente sobre a pele de um infeliz. Os recipientes de onde se despejava o óleo tinham a requintada forma de gatos, num toque decorativo tão oriental. Eram os gatos “pingados”.
Em outra página, encontramos o endosso à tese da tortura japonesa acompanhado do passo que faltava para chegar ao sentido de “gatos pingados” como conjunto de poucas pessoas:
Como o suplício tinha uma assistência reduzida, tal era a crueldade, a expressão “gatos pingados” passou a denominar pequena assistência sem entusiasmo ou curiosidade para qualquer evento.
Pode ser verdade? Nunca se sabe. No entanto, sem a citação de uma fonte histórica sequer – e sem a tentativa de explicar como uma suposta prática de tortura japonesa teria conseguido a proeza de penetrar tão resolutamente na língua portuguesa, e apenas nela – convém manter uma reserva de ceticismo. Toques exóticos e rebuscados como recipientes de óleo com “requintada forma de gatos” costumam denunciar o falso etimologista tão inapelavelmente quanto o rabo de fora denuncia o gato escondido.
Isso se dá sobretudo quando o elemento pitoresco, ao suprir um dos elos lógicos do raciocínio (por que gatos?), mascara uma possibilidade mais razoável. Como a de que a expressão se refira apenas, e de forma literal, a gatos torturados com pingos de óleo fervente – uma prática que, infelizmente, nunca foi rara em Portugal, no Brasil e num grande número de países de diversas línguas, sem que a crueldade japonesa tivesse nisso a mais remota influência.
Note-se que uma das acepções do verbo pingar, caída em desuso, era justamente “supliciar, deixando cair sobre o corpo pingos de um líquido fervente” (Houaiss). Pingavam-se escravos. Pingavam-se gatos. Pingavam-se outros animais, a depender do gosto doentio do freguês, mas todos sabem que a espécie felina ocupa desde a antiguidade o posto de vítima preferencial do sadismo humano – pelo menos entre os quadrúpedes, uma vez que seria difícil tirar do próprio homem o primeiro lugar nessa corrida.
Quanto ao sentido de gato pingado como “membro de um conjunto de poucas pessoas”, basta levar em conta o fato de que gatos torturados se tornam arredios, avessos ao contato humano. Esgueiram-se pelos cantos, solitários, tentando se fazer invisíveis. Como diz aquele ditado, mais uma criação popular de tema felino, “gato escaldado (isto é, queimado com água fervente) tem medo (até) de água fria”. É possível ainda que a ideia de escassez associada figurativamente ao verbo pingar tenha atuado como reforço.
A origem da acepção lusitana de gato-pingado como agente funerário, papa-defunto, permanece um tanto misteriosa, mas talvez não seja descabido relacioná-la de alguma forma ao preconceito social contra profissionais que, por lidarem com a morte, estariam condenados ao ostracismo.
*