De Canudos para o Brasil: a história da palavra favela
Favela da Rocinha, no Rio (foto de Manuela Franceschini) Em sua acepção dominante de “conjunto de habitações populares toscamente construídas (por via de regra em morros) e com recursos higiênicos deficientes” (Aurélio), a palavra favela é um brasileirismo que tem história de clareza incomum – e além do mais ligada a um dos maiores clássicos […]
Em sua acepção dominante de “conjunto de habitações populares toscamente construídas (por via de regra em morros) e com recursos higiênicos deficientes” (Aurélio), a palavra favela é um brasileirismo que tem história de clareza incomum – e além do mais ligada a um dos maiores clássicos da literatura brasileira.
Publicado em 1902, “Os sertões”, de Euclides da Cunha, sobre a guerra de Canudos (1896-1897), descreve a região do sertão baiano em que tinham se assentado os fiéis do beato Antônio Conselheiro falando de uma “elítica curva fechada ao sul por um morro, o da Favela, em torno de larga planura ondeante onde se erigia o arraial de Canudos…”. O nome do morro, explica o autor, devia-se a uma planta comum por ali, as favelas, “anônimas ainda na ciência – ignoradas dos sábios, conhecidas demais pelos tabaréus…”.
Euclides se referia à Jatropha phyllacantha, também conhecida como faveleira e mandioca-brava, de nome formado provavelmente como diminutivo de fava. Mas o papel da origem botânica da palavra nessa história se encerra aí. Ocorre que no morro da Favela, que tinha posição estratégica, acamparam as tropas federais enviadas para esmagar Canudos.
Agora a palavra passa de Euclides para o etimologista Antenor Nascentes: de volta ao Rio de Janeiro, “veteranos da campanha pediram permissão ao ministério da Guerra para construir casas para suas famílias no morro da Providência. Daí por diante, o morro, seja como recordação da campanha, seja por alguma semelhança de aspecto ou por estar sobranceiro à cidade, como o de Canudos, passou a chamar-se da Favela, nome que se tornou por assim dizer nacional”.
Segundo o Houaiss, o primeiro registro escrito da nova acepção, ainda como nome próprio, apareceu na revista semanal carioca “Careta” em 1909. Desde então o termo virou substantivo comum e – como as próprias favelas – passou a ocupar cada vez mais espaço na paisagem cultural do país. Há algumas décadas era usual encontrar nos dicionários definições abertamente preconceituosas que falavam em “local onde residem marginais”. Hoje a acepção propriamente pejorativa se restringe ao uso figurado do termo, às vezes empregado com o sentido de “lugar de mau aspecto; situação que se considera desagradável ou desorganizada” (Houaiss).
Como curiosidade, vale registrar que a tradução argentina de favela, villa, também teve um livro em sua origem. A semelhança parcial de grafia é mera coincidência: villa é uma palavra clássica do espanhol (em português, “vila”). Segundo contam José Gobello e Marcelo H. Oliveri em seu Novísimo diccionario lunfardo, o vocábulo virou sinônimo de favela como forma reduzida de villa miseria, expressão criada pelo escritor Bernardo Verbitsky em seu romance “Villa Miseria também é América”, de 1955.
Publicado em 5/2/2013.