‘Côndor’, ‘plátinum’ e outras marquetices: isso pode?
“Duas operadoras de cartão de crédito e uma montadora de veículos alardeiam seus produtos ‘platinum’ na TV, pronunciando ‘plátinum’, proparoxítona. O original em latim é ‘platinum’, paroxítona e sem acento. Se fosse em português a grafia ‘platinum’ seria pronunciada ‘platinúm’ (oxítona, como ‘algum’). Na minha região há uma rede de supermercados que se anuncia Côndor […]

“Duas operadoras de cartão de crédito e uma montadora de veículos alardeiam seus produtos ‘platinum’ na TV, pronunciando ‘plátinum’, proparoxítona. O original em latim é ‘platinum’, paroxítona e sem acento. Se fosse em português a grafia ‘platinum’ seria pronunciada ‘platinúm’ (oxítona, como ‘algum’). Na minha região há uma rede de supermercados que se anuncia Côndor na pronúncia, mas se assina Condor (oxítona) na escrita, palavra que existe e designa uma ave. E a Petrobras, que não coloca acento e fica Petrobras, paroxítona como em sobras, manobras etc. Afinal, as grandes empresas têm essa liberdade toda para lidar dessa forma desleixada com a grafia da língua portuguesa?” (Walter Silva)
Tratei desse assunto há cerca de um ano, num texto chamado “Marcas registradas têm o direito de deformar a língua?” (leia aqui). Em minha opinião, a resposta é sim: marcas registradas têm todo o direito de brincar como bem entenderem com a linguagem, da mesma forma que os consumidores têm todo o direito de antipatizar com certas brincadeiras – e, por extensão, com os produtos associados a elas.
Isso me parece uma liberdade civil inegociável. Como escrevi na época: “Vamos combinar que uma instância fiscalizadora da conduta dos gestores de branding só seria concebível numa sociedade totalitária de caricatura. Em sua bendita ausência, cabe exclusivamente ao cliente de cada produto dizer se gosta ou não da travessura linguística em questão”.
As travessuras são variadas, mas a maioria tem a ver com o suposto charme que grafias (e pronúncias) estrangeiras adicionam ao discurso de venda. A maioria dos casos trazidos por Walter se encaixa nessa categoria.
Platinum é, sim, uma palavra do latim científico que em português, por influência do espanhol, virou “platina”. Ocorre que platinum é também a grafia desse termo em inglês, inspiração óbvia da pronúncia plátinum preferida por dez entre dez marqueteiros brasileiros.
“Condor” é um vocábulo da língua portuguesa, certo. Antes que o importássemos, porém, era um vocábulo da língua espanhola, cóndor, derivado do quíchua kúntur. Eis a origem provável da pronúncia côndor que Walter estranha – ou será que mais uma vez estamos diante de uma influência da língua inglesa, que também foi buscar no espanhol a palavra condor e também a trata como paroxítona?
Quem quiser considerar contrangedora ou mesmo jeca essa fetichização do outro, do estrangeiro, pode. Só não faria sentido proibi-la.
O caso da Petrobras, que até 1997 era Petrobrás (com acento agudo), é um pouco diferente, mas também se relaciona com uma perspectiva estrangeira: o acento caiu em nome da tese duvidosa de que, sendo inexistente na maior parte dos idiomas do mundo, seria prejudicial à internacionalização da marca.
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