‘Como um todo’: modismo e redundância? Sim, mas…
“Costumeiramente ouvimos uma série de expressões, construções, as quais podemos incluir em algumas categorias – umas são ‘duvidosas’, outras, apenas uma questão de gosto (ou mau gosto), e outra categoria, a das expressões mais infelizes, é a das construções automáticas e estranhas, sobre cujas estruturas e legitimidade pouca gente se questiona. Recentemente, numa entrevista na […]
“Costumeiramente ouvimos uma série de expressões, construções, as quais podemos incluir em algumas categorias – umas são ‘duvidosas’, outras, apenas uma questão de gosto (ou mau gosto), e outra categoria, a das expressões mais infelizes, é a das construções automáticas e estranhas, sobre cujas estruturas e legitimidade pouca gente se questiona. Recentemente, numa entrevista na TV, ouvi um sujeito dizer ‘…no país como um todo’. Isso existe? Em ‘no país’ já não fica subentendido o país inteiro, todo o território?” (Ricardo Fellman)
Antes de mais nada, reconheça-se que a consulta de Ricardo Fellman é a de um falante preocupado com uma praga que merece mesmo preocupação: a propensão que todos temos para cair na linguagem automática, no uso irrefletido de expressões que muitas vezes nos levam a proferir palavras vazias, de sentido escasso ou até, quando as examinamos de perto, incongruente. São as muletas discursivas, os arredondamentos rítmicos etc.
Isso é pecado? Depende de diversos fatores: hora, lugar, intenção, até mesmo grau de capricho com que cada um trata – e gosta de ser visto tratando – o idioma. A margem de liberdade individual corresponde à apropriação que cada falante deve fazer dos recursos disponíveis na língua, tornando-os seus. As necessidades de comunicação nunca caberão inteiras na função denotativa da linguagem, aquela centrada na simples transmissão de uma mensagem: o jogo inclui uma série de bordões, lugares-comuns, interjeições, gírias, vocativos, marcadores de ritmo.
Se for desejo do falante – seja por necessidade ou por prazer, no plano profissional ou no pessoal – investir em elegância, apuro e precisão, livrando sua língua na medida do possível de todos os automatismos, modismos e outras sujeiras, o primeiro passo é desconfiar de tudo mesmo. Desenvolver um olhar crítico como o de Fellman dá trabalho, mas é saudável. No entanto, deve-se tomar cuidado com os exageros. A expressão que o leitor condena parece estar realmente na moda: fala-se no país como um todo, na sociedade como um todo, quando muitas vezes bastaria dizer “no país” e “na sociedade”. Mas atenção: nem sempre!
“Em ‘no país’ já não fica subentendido o país inteiro, todo o território?”, pergunta Fellman. A resposta é: não necessariamente. “O maestro italiano desembarcou no país hoje de manhã” é uma afirmação diante da qual ninguém supõe que o visitante tenha posto os pés simultaneamente em todo o território nacional. No fim das contas, trata-se de um caso muito parecido com o da expressão “eu, particularmente”, já comentada aqui. Para saber se estamos diante de uma redundância besta ou de uma expressão funcional, é preciso analisar o contexto. Como naquele caso, a funcionalidade de “como um todo” me parece inegável em frases opositivas como esta: “Há bolsões de desenvolvimento, mas o país como um todo é atrasado”.
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