Como ser desonesto com as palavras
Há muitas formas de ser desonesto com as palavras. Uma parte substancial delas envolve a tentativa de engambelar ou intimidar o interlocutor dando-lhe a impressão de que não alcança aquilo que dizemos quando, na verdade, aquilo que não dizemos é tudo o que queremos dizer. Trata-se de um truque especialmente caro à alma brasileira, e […]

Há muitas formas de ser desonesto com as palavras. Uma parte substancial delas envolve a tentativa de engambelar ou intimidar o interlocutor dando-lhe a impressão de que não alcança aquilo que dizemos quando, na verdade, aquilo que não dizemos é tudo o que queremos dizer. Trata-se de um truque especialmente caro à alma brasileira, e existem três caminhos básicos para lográ-lo: por meio do vocabulário preciosista, do raciocínio tortuoso ou de ambos.
Vocabulário: “Uma precipitação pluviométrica potencial dá mostras de se abrigar nos alvéolos plúmbeos daqueles cúmulos-nimbos a boreste”. Tradução: “Vai chover”.
Raciocínio: “A manifestação da aparência nos acena com um vazio de bom tempo onde, a rigor, o que está sendo gerado é uma plenitude de tempo ruim”. Tradução: “Vai chover”.
O hermetismo de vocabulário é mais popular nos meios jurídicos, enquanto o de raciocínio faz muito sucesso em círculos acadêmicos. Quando o vocabulário preciosista se une ao raciocínio tortuoso, temos o juridiquês terminal ou o academiquês cascudo, ambos de efeitos devastadores para a inteligência. Em respeito à sacrossanta paz de espírito do domingo, o leitor será poupado de exemplos.
Nem sempre, porém, a desonestidade com as palavras consiste em fazê-las passar por cima da cabeça do outro. Não é menos desonesto o expediente de baratear a mensagem, vendê-la no saldão demagógico da ignorância. Graciliano Ramos acusava certos escritores modernistas de cometer tal crime ao agredir propositalmente a língua para afetar, de forma paternalista, uma origem popular que não era a deles, fazendo jus a um estranho elogio: “Como eles sabem escrever mal!”.
Entre a altitude rarefeita e o fundo do poço, entre o hermetismo e a liquidação, a sintonia fina da honestidade com as palavras deve ser buscada. Não é tarefa fácil, mas de seu sucesso talvez dependa mais que uma virtude moral: há quem diga que o próprio futuro da civilização está em jogo. E o pior é que nem todos os perigos residem aí. Há casos em que a desonestidade com as palavras, expressa em português claro, é só desonestidade mesmo:
“Nunca vi essa mulher mais gorda. Essa mancha é do seu batom, querida. Não, esta cueca não é minha. Nem do meu tamanho é, repare. Eu já disse que não sabia de nada!”