Como esquentar a vaca fria
De volta à vaca fria da crônica dominical sobre palavras, minha atenção recai sobre a expressão “vaca fria” (sem hífen, embora os sábios o recomendem, viva a desobediência civil). Não é de hoje que me intriga essa locução popular antiguinha, mas de uso ainda comum no Brasil e em Portugal, que significa “assunto já ventilado, […]

De volta à vaca fria da crônica dominical sobre palavras, minha atenção recai sobre a expressão “vaca fria” (sem hífen, embora os sábios o recomendem, viva a desobediência civil). Não é de hoje que me intriga essa locução popular antiguinha, mas de uso ainda comum no Brasil e em Portugal, que significa “assunto já ventilado, mas não inteiramente resolvido, ao qual se volta”. Voltemos.
Houve um tempo em que a expressão era, para mim, puro mistério. De onde veio esse bovino? E por que ele é frio? Aos poucos fui desencavando teses eruditas sobre sua origem, nenhuma delas inteiramente conclusiva. A verdade é que a vaca fria é uma tremenda vaca fria. Uma prova de que, no mundo das palavras, estamos sempre pisando em terreno movediço – etimologia nunca foi ciência exata.
A locução foi dicionarizada pela primeira vez em 1899 pelo português Cândido de Figueiredo. Antes disso, tinha merecido a atenção do brasileiro Francisco Mendes de Paiva, que publicou em 1879, sob o pseudônimo Teobaldo, o livro “Provérbios históricos e locuções populares”, citado pelo etimologista Silveira Bueno ao contar a seguinte história:
“Com pequena variante de animais, ora o carneiro, ora a cabra, diz Teobaldo (…) que é muito velha a frase, prendendo-se, em português, ao fato de litigarem perante um juiz sobre a posse de uma vaca: a certa altura, quando o advogado da defesa fazia longas digressões, falando até de Faetonte e do seu carro ardente, atalhou o juiz: ‘Tudo isto é muito bonito, mas voltemos à vaca fria’.”
Um parêntese explicativo: na mitologia grega, Faetonte, filho do deus Hélios, senhor do Sol, é um personagem trapalhão que um dia ganhou permissão para dirigir a carruagem do pai – que vinha a ser o próprio astro rei – e pôs fogo no mundo. Segundo a tese de Teobaldo, a tirada espirituosa do juiz jogava água fria na oratória inflamada do advogado.
Se tudo isso soa um pouco elaborado demais, é porque talvez seja mesmo. Raimundo Magalhães Jr. conta uma história bem mais prosaica em seu “Dicionário de provérbios”: “A vianda fria é um prato com que se iniciam as refeições e ao qual não é costume voltar, depois de servidos os pratos quentes”. Ah, então é só isso? Hmm, não sei não. O mesmo autor acrescenta: “Em francês há uma expressão equivalente: Revenons à nos moutons (‘Voltemos aos nossos carneiros’), cuja origem é literária”.
É aí que a vaca fria começa a esquentar. No verbete dedicado à frase francesa, Magalhães Jr. diz que ela se popularizou por meio de um texto anônimo do século 15, chamado “Farsa do advogado Pathelin”. É proferida por um juiz mordaz (olha o personagem aí de novo) “quando o advogado começa a fazer longas digressões que nada têm que ver com a causa, isto é, com os carneiros que foram furtados pelo ladrão que ele defende”.
Esses carneiros franceses, como se vê, reforçam a tese de Teobaldo. Estamos falando de um tempo em que contos anônimos eram apropriados, recontados e aperfeiçoados livremente. É mais do que plausível que um algum autor português – também esquecido – tenha trocado carneiros por vacas. Quem sabe aproveitou para adicionar ele mesmo uma pitada de cultura clássica à mistura, ou no mínimo o adjetivo glacial que tornava mais engraçado o fora do juiz no advogado flamejante.
Certeza mesmo, duvido que um dia a gente tenha. Estamos condenados a voltar eternamente à vaca fria.