Coito, biscoito, coitado: a semelhança é mera coincidência
“Caro professor, eu sempre soube que a palavra coitado era derivada de coito, quer dizer, coitado era aquele que se ferrou (desculpe a grosseria, mas não sei dizer isso educadamente). Sempre soube também que biscoito vinha da mesma fonte, quer dizer, ‘ferrado’ duas vezes, assado, mais ou menos como a gente diz que uma pessoa […]
“Caro professor, eu sempre soube que a palavra coitado era derivada de coito, quer dizer, coitado era aquele que se ferrou (desculpe a grosseria, mas não sei dizer isso educadamente). Sempre soube também que biscoito vinha da mesma fonte, quer dizer, ‘ferrado’ duas vezes, assado, mais ou menos como a gente diz que uma pessoa que se deu mal está ‘frita’. Aí, de uma hora para outra, veio um amigo meu dizer que tudo isso está errado. Está mesmo?” (Leonardo R. Garcia)
Sim, Leonardo, tudo isso está erradíssimo. A falsa etimologia de coitado é uma das mais resistentes da língua portuguesa – e a de biscoito, se não é tão famosa, pelo menos é igualmente falsa. Já tratei do caso de coitado aqui na coluna em 2011, mas lendas desse tipo exigem que se volte sempre ao tema. Repito então o que escrevi na época.
A curiosidade que cerca a palavra “coitado” não está em sua verdadeira origem, e sim em um equívoco que se costuma associar a ela. Segundo essa falsa etimologia, que é tão difundida quanto persistente, a palavra era de início uma expressão grosseira (coitado = submetido a coito) que foi aos poucos ganhando aceitação social, à medida que sua raiz era esquecida. Parece fazer sentido, mas não faz.
Os etimogistas sérios ensinam que coitado, antes de virar adjetivo e substantivo, era o particípio de um verbo arcaico, “coitar” (atormentar, desgraçar, infligir sofrimento a). Vindo do latim vulgar coctare e parente distante do verbo “coagir”, coitar caiu em desuso, mas deixou sua marca em “coitado”, isto é, atormentado, vítima de dor ou desgraça.
Já o substantivo coito, segundo os sábios, tem como único ponto de contato com a história acima o fato de ter sua origem no latim – no caso, no verbo coire, que significa literalmente “ir com”, ou seja, “fazer sexo com”. Essa ideia de “ir com” ainda encontra eco na língua de hoje, numa expressão popular: “Ela vai com qualquer um”.
Do caso de biscoito eu nunca falei, e confesso que não tinha me ocorrido que pudesse ser posto no mesmo pacote de equívocos de coitado. Mais uma vez, estamos diante de uma semelhança enganadora. Biscoito veio mesmo do latim bis + coctum, “cozido duas vezes”, mas esse coctum, particípio de cocere (“cozinhar”), não tem relação nem com coctare, nem com coire.
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