Chamar a atenção de alguém? Ou chamar alguém à atenção?
“Fui corrigida por dizer que tinha ‘chamado a atenção’ de Fulano (que procedera mal). Disseram-me que eu deveria haver dito: ‘Chamei Fulano à atenção’. Procede, Sérgio? É opcional ou será que eu sempre falei errado? Grata.” (Isabel Lisboa) Há pouco mais de dois anos, respondendo ao leitor Heraldo Marques, tratei do mesmo caso trazido por […]
“Fui corrigida por dizer que tinha ‘chamado a atenção’ de Fulano (que procedera mal). Disseram-me que eu deveria haver dito: ‘Chamei Fulano à atenção’. Procede, Sérgio? É opcional ou será que eu sempre falei errado? Grata.” (Isabel Lisboa)
Há pouco mais de dois anos, respondendo ao leitor Heraldo Marques, tratei do mesmo caso trazido por Isabel. Certas indagações não mudam, o que é natural – no caso, como a leitora deixa claro, alimentadas por gente que continua a corrigir erros imaginários no discurso dos outros. A resposta também não.
A consulta parece simples – e não deixa de ser simples, pois, como veremos, as duas formas estão corretas e são rigorosamente intercambiáveis. Mas é das mais interessantes também, por iluminar uma daquelas zonas escuras em que consultores gramaticais apegados demais à tradição lusitana se esforçam para condenar, sem maiores reflexões, uma opção legítima do português brasileiro.
Antes de prosseguir convém deixar claro que, entre as muitas locuções que envolvem a palavra “atenção”, estamos falando apenas das que têm o sentido de “repreender, advertir, censurar, admoestar”. Nesse caso, “chamar a atenção de (alguém)” é a expressão mais empregada no Brasil, enquanto “chamar (alguém) à atenção”, que pode ser considerada uma construção mais clássica, agrada ao paladar dos portugueses.
Curiosamente, essas preferências nacionais são tão arraigadas que até bons lexicógrafos chegam a ignorar a construção privilegiada do lado oposto do Atlântico. O Houaiss registra, para tal acepção, apenas a forma “chamar a atenção de” – a mesma que volta e meia vemos estigmatizada como “erro” por análises lusófilas. Já o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa considera exclusiva, com o sentido de “fazer um reparo, uma crítica”, a forma “chamar (alguém) à atenção”, de construção similar à de expressões como “chamar à ordem” e “chamar à razão”.
Uma espiada nos mecanismos por trás dessas locuções ajuda a compreender tanto sua diferença quanto sua alma comum. É legítimo supor que a acepção de repreender surgiu como expansão semântica de outra, esta mais colada ao sentido original de atenção: “chamar a atenção” como sinônimo de “alertar, fazer notar, lembrar, apontar”.
Ora, esta última locução é empregada de forma idêntica em Portugal e no Brasil: “Chamou a atenção do filho para os estudos” é uma frase sobre a qual não paira controvérsia e que também pode ser formulada de forma um pouco diferente, sem prejuízo semântico algum: “Chamou o filho à atenção para os estudos”.
Como ninguém ignora, a distância entre “apontar, alertar” e “repreender, admoestar, criticar” é bem pequena, questão de ênfase: para não fugir do nosso exemplo, basta que o tal filho esteja pouco disposto a encarar os estudos. Isso deixa claro por que as formas “chamar a atenção (do filho)” e “chamar (o filho) à atenção” chegaram, em seu desenvolvimento semântico, exatamente ao mesmo lugar.
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