Bonito, mas pode chamar de ‘bonzinho’
Uma amiga – aliás bonita, mas isso não vem ao caso – se queixa da “ditadura estética” que, em sua opinião, vem se agravando na indústria cultural. É possível que venha mesmo, mas, de uma forma ou de outra, acredito ser importante reconhecer que um de seus pilares, a associação entre o bom e o […]

Uma amiga – aliás bonita, mas isso não vem ao caso – se queixa da “ditadura estética” que, em sua opinião, vem se agravando na indústria cultural. É possível que venha mesmo, mas, de uma forma ou de outra, acredito ser importante reconhecer que um de seus pilares, a associação entre o bom e o belo, não surgiu ontem. Depois de descontados os contrabandos raciais com que o cinema americano temperou a seu modo o paralelo entre beleza e bondade (mocinho bonito de olhos azuis contra vilão feioso de olhos negros, por exemplo), as ideias continuam de mãos dadas.
É claro que esse é só um dos aspectos da imposição de padrões estéticos irrealistas a uma massa marcada pela infinita diversidade: parte do problema é a própria construção do gosto geral, a determinação do que é “feio” e do que é “bonito”. Mesmo assim, acredito ser proveitoso atentar para a curiosidade etimológica que abordei aqui há pouco mais de quatro anos: a palavra “bonito” veio, no fim das contas, do termo latino bonus, ou seja, “bom”. Desembarcou no português no século XVI, provavelmente depois de ir buscar o sufixo diminutivo ito no espanhol. O bonito é, na origem, bonzinho.
A ligação entre bondade e beleza não é um sentido contrabandeado por séculos de história: desde o início, no latim, uma das acepções de bonus era – além das de “bom, virtuoso, útil, legítimo, corajoso e nobre” – a de “belo, formoso, gentil, elegante”. E a própria palavra bellus, que deu em nosso “belo”, é uma contração de benulus, diminutivo de bonus. Mais uma vez, “bonzinho”.
A chamada ditadura estética pode ser realmente odiosa, mas quem estiver disposto a derrubá-la deve apontar suas armas para muito além dos estereótipos veiculados pela cultura de massa. A sinestesia bonito/bom – que no verso, claro, é a sinestesia feio/mau – tem raízes culturais profundas.