Antes DO sol nascer ou antes DE O sol nascer?
“Caro Sérgio, me ajude com essa. Todos os meus professores de português sempre me disseram que o certo é dizer: ‘Está na hora DE O povo acordar’, ‘Ele se levantou antes DE O sol nascer’. Diziam que é errado o modo que quase todo mundo fala, ‘Está na hora DO povo acordar’ e ‘Ele se […]
“Caro Sérgio, me ajude com essa. Todos os meus professores de português sempre me disseram que o certo é dizer: ‘Está na hora DE O povo acordar’, ‘Ele se levantou antes DE O sol nascer’. Diziam que é errado o modo que quase todo mundo fala, ‘Está na hora DO povo acordar’ e ‘Ele se levantou antes DO sol nascer’. Acreditei nisso até um dia desses, quando estava calmamente lendo Saramago e reparei que ele comete vários desses ‘erros’! Ou será que não são erros? Quem está certo, afinal, o Nobel português ou os meus abnegados professores?” (Regina Finotti)
Em sua excelente consulta, Regina traduz uma experiência muito semelhante à minha. Também cresci ouvindo meus professores dizerem que não se pode fazer a contração da preposição “de” com o artigo definido em casos como estes. E por que não? Porque uma análise sintática simples revela que “o povo acordar” e “o sol nascer” são novas orações, com sujeitos – respectivamente “o povo” e “o sol” – que rejeitam naturalmente a contração. Onde já se viu preposicionar sujeito?
Acreditei nessa conversa por muito tempo. Com o passar dos anos, descobri que o mundo da escrita profissional, tanto o jornalístico quanto o editorial, também a tomava como lei pétrea. Passei a ver o veto a tal contração como mais uma daquelas situações em que a oralidade e a escrita discordam, paciência. Se todo mundo (sim, todo mundo mesmo e não “quase todo mundo”, viu, Regina?) diz, por exemplo, que “está na hora da onça beber água”, isso se perdoa na informalidade da língua falada, mas na hora de escrever a história é outra.
Também no meu caso, foi a leitura de autores portugueses o primeiro sinal de que nem tudo era tão pacífico nesse terreno. O fato é que em terras lusitanas a preferência – inclusive de falantes cultos, cultíssimos – se inclina decididamente pela contração em casos como os que Regina cita.
Pequisando mais, fui descobrir que também no Brasil os gramáticos mais arejados já dizem há tempos que fazer ou não fazer a contração é, no mínimo, uma escolha do freguês. O argumento do “sujeito preposicionado” que os conservadores usaram para condenar a contração como solecismo é desmontado desta forma por Evanildo Bechara em sua “Moderna gramática portuguesa”: “Na realidade não se trata de regência preposicional do sujeito, mas do contato de dois vocábulos que, por hábito e por eufonia, costumam vir incorporados na pronúncia. A lição dos bons autores nos manda aceitar ambas as construções [com e sem contração]…”
Cristalino, não? Por que, então, tantos professores de português, editores e revisores brasileiros continuam a passar a caneta vermelha em frases como “chegou a hora da onça beber água”? A questão é mais psicanalítica do que gramatical, mas vou arriscar uma hipótese: a de que nossas taxas historicamente catastróficas de analfabetismo e a tradição bacharelesca da elite letrada nos tornam inclinados a desconfiar da oralidade, da simplicidade, mesmo que às custas de cair no feio pecado da hipercorreção.
Dito isso, convém tomar cuidado com as canetas vermelhas. A menos que você esteja escrevendo em Portugal ou já não deva nada a ninguém, evite a contração de preposição e artigo em construções desse tipo. O fato de o raciocínio ser furado não basta para lhe retirar o poder – viu como escrevi certo, professor?
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