A vez do vice
O escritor argentino Jorge Luis Borges dizia que, apesar do inegável charme da etimologia como fonte de curiosidades, conhecer a origem das palavras não tem função prática alguma. “Saber que, em latim, cálculo significa pedrinha e que os pitagóricos usavam dessas pedrinhas antes da invenção dos números não nos permite dominar os arcanos da álgebra”, […]
O escritor argentino Jorge Luis Borges dizia que, apesar do inegável charme da etimologia como fonte de curiosidades, conhecer a origem das palavras não tem função prática alguma. “Saber que, em latim, cálculo significa pedrinha e que os pitagóricos usavam dessas pedrinhas antes da invenção dos números não nos permite dominar os arcanos da álgebra”, escreveu ele. “Saber que hipócrita era ator, e persona, máscara, não é um instrumento válido para o estudo da ética.”
Não duvido que em linhas gerais ele tenha razão: Borges enxergava longe. No entanto, ao se pronunciar de forma tão categórica contra a etimologia, ele parece cego a pelo menos um aspecto da questão: traçar a árvore genealógica de termos banalizados pelo uso corrente em busca de seus antepassados mais remotos pode ser uma forma de refletir mais detidamente sobre eles. E refletir quase sempre é bom – na política, por exemplo, é ótimo. Veja-se o caso de “vice”.
Olhando para Michel Temer, Indio da Costa e Guilherme Leal, os principais candidatos à vice-presidência da República, alguém pode ver apenas os coadjuvantes dos astros principais, figuras meio decorativas que pouco fazem além de escorar alianças. O vice-presidente, como o vice-campeão numa competição esportiva, é o que vem em segundo lugar, ocupando um plano recuado que nos parece tão honroso quanto inócuo: sendo vice, é quase campeão, quase presidente, mas não é campeão nem presidente. Por que lhe dar importância?
Por mais que se saiba que as coisas não funcionam assim e que ao longo de nossa história os vice-presidentes, destoando dos vice-campeões, foram convocados com razoável frequência a tomar o lugar da atração principal, a palavra vice parece carregar na alma uma conotação de irrelevância.
É aí que entra a etimologia. Para aguçar nossa consciência ao nos lembrar que o prefixo vice veio do latim vice, com seus sentidos de sucessão e alternância, como em vice-versa. Que do mesmo vice saiu o substantivo vez, o que revigora o significado de uma expressão corriqueira (também herdada do latim) como “fazer as vezes de”, ou seja, substituir. As associações ficam mais macabras quando se descobre na linhagem de vice a palavra vicissitude, que nasceu para designar simplesmente uma série de mudanças, como a das estações, mas acabou se consagrando com o sentido expandido de revés, contratempo, insucesso.
Conclusão: com sua imobilidade quase inabalável de segundo colocado, o vice-campeão, sócio relativamente recente, entrou nesse clube de gaiato. Os verdadeiros vices foram feitos para ter vez à primeira vicissitude. Depois não vale dizer que ninguém avisou.