A palavra ‘mídia’ é o fim da picada, certo? Errado
“Morro de vergonha quando vejo (o tempo todo) a palavra mídia, que vem do latim, escrita como se tivesse vindo do inglês, imitando a pronúncia americana. E ainda por cima no singular, quando se sabe que ‘media’ é o plural de ‘medium’. Por que não fazemos como os portugueses, que escrevem ‘os média’? No mínimo, […]
“Morro de vergonha quando vejo (o tempo todo) a palavra mídia, que vem do latim, escrita como se tivesse vindo do inglês, imitando a pronúncia americana. E ainda por cima no singular, quando se sabe que ‘media’ é o plural de ‘medium’. Por que não fazemos como os portugueses, que escrevem ‘os média’? No mínimo, tínhamos que falar ‘os mídia’. Isso para mim é uma prova do nosso subdesenvolvimento cultural, você concorda?” (Ivan Bueno)
Não, Ivan, não concordo. Posições tão categóricas quanto a sua não resistem a uma reflexão desapaixonada sobre o problema linguístico de media/média/mídia, que de simples não tem nada. O que vemos no português do Brasil e no português de Portugal são soluções diversas baseadas em diferentes formas de interpretar o termo de origem. Ambas têm vantagens e desvantagens.
Sim, media, como se sabe, é uma palavra do latim, plural de medium, “meio”. Ocorre que seu sentido de “meios de comunicação de massa” nunca existiu em latim: trata-se de uma encarnação dramaticamente nova, com nova carga semântica, forma reduzida de mass media – uma expressão nascida no vocabulário publicitário americano nos anos 1920 e, décadas mais tarde, exportada para diversas línguas.
Basta abrir mão do purismo para reconhecer que isso torna a media tão inglesa quanto latina. Se um pouco mais isto, por filiação linguística, ou um pouco mais aquilo, por contexto histórico-cultural, vai depender do freguês. Portugal fez a opção de tratar a palavra como latina; o Brasil, como inglesa.
É claro que tais escolhas – se assim podemos chamar processos coletivos, tácitos e incontroláveis como esses – nunca são inocentes. O português luso tem sem dúvida menos abertura para a influência anglófona (e mais para a francófona) do que o brasileiro, que muitas vezes chega mesmo às raias do servilismo diante de modismos vocabulares made in USA. Não me parece que seja o caso de mídia, que considero uma palavra mais funcional do que média. Explico.
Os críticos da forma mídia, como Ivan, baseiam seu ataque em dois argumentos: o de que é ridículo aportuguesar a palavra com essa grafia que imita a pronúncia da língua inglesa; e o de que é pura ignorância tratá-la como substantivo feminino singular (a mídia), em vez de masculino plural (os mídia). Ambos caem por terra quando se compreende que o português brasileiro importou uma palavra do idioma de Marshall McLuhan, não da língua de Cícero.
Por que caem por terra? Porque é comum que em empréstimos do gênero se preserve a pronúncia original, como ocorre por exemplo com xampu (do inglês shampoo) e sutiã (do francês soutien). Quanto à interpretação de media como substantivo singular, trata-se de um desenvolvimento natural provocado por seu sentido de “conjunto de meios”, algo que ocorre também (ainda que de forma não exclusiva) no inglês. O gênero feminino me parece autoexplicativo.
Se, apesar de tudo isso, mídia não é mesmo uma solução das mais elegantes, deve-se reconhecer que o português média (ou media, sem aportuguesamento e com grifo, como prefere a maioria dos dicionaristas lusos) também apresenta problemas. O primeiro deles é justamente essa indefinição: quando se lança um acento para aclimatar o vocábulo, cria-se uma anomalia – “os média” desrespeita a regra da flexão de número em português. Quando se resolve isso mantendo o termo em latim, engessa-se a língua, fechando a porta à incorporação de uma palavra presente em grande número de neologismos e cada vez mais importante para a compreensão do mundo.
É por isso que considero mídia uma solução mais funcional, ainda que esteticamente meio desajeitada. Para um sentido único, grafia única. E ninguém corre o risco de que lhe sirvam um café com leite por engano.
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