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Sobre Palavras

Por Sérgio Rodrigues Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Este blog tira dúvidas dos leitores sobre o português falado no Brasil. Atualizado de segunda a sexta, foge do ranço professoral e persegue o equilíbrio entre o tradicional e o novo.

A língua é negra, mas o elefante é branco

É preciso ter atenção. Não se pode dizer que a coisa está preta porque é ofensivo. As línguas negras não apenas cheiram mal e estragam a praia, estragam também o dia de muita gente com seu racismo crasso. Buraco negro, quadro negro, lista negra – devemos repensar todas essas expressões porque, como se sabe, a […]

Por Sérgio Rodrigues
Atualizado em 31 jul 2020, 03h53 - Publicado em 11 Maio 2014, 11h20

É preciso ter atenção. Não se pode dizer que a coisa está preta porque é ofensivo. As línguas negras não apenas cheiram mal e estragam a praia, estragam também o dia de muita gente com seu racismo crasso. Buraco negro, quadro negro, lista negra – devemos repensar todas essas expressões porque, como se sabe, a língua está impregnada de preconceitos vis, e se às vezes não nos damos conta é porque o mal é insidioso e tem seus disfarces. Recomenda-se cuidado para não denegrir ninguém, e até para designar o negrume das noites sem lua convém proceder com cautela e procurar uma palavra politicamente correta. Algo como, sei lá, afronoite. Alguém tem sugestão melhor?

Bom, eu tenho. Já que vivemos tempos tão difíceis e precisamos reaprender a falar, sugiro pensar um pouco mais sobre a nova ética da língua para evitar injustiças. Tome-se, por exemplo, uma expressão aparentemente inocente que nossos administradores e empreiteiros não deixam cair em desuso: elefante branco. Nem é preciso enfatizar o peso negativo de “elefante branco”, essa inutilidade vistosa, ridícula, quase sempre lesiva aos cofres públicos. É ou não é um exemplo de racismo da língua? E o que dizer de “dar um branco”? Expressão traiçoeira, essa aí paira feito ave de rapina e gosta de atacar em momentos delicados como provas finais, vestibulares, entrevistas de emprego e episódios do Show do Milhão. De repente dá um branco, o sujeito fica tapado, esquece tudo o que aprendeu. É uma frase nojenta em sua evidente referência à limitada capacidade intelectual dos brancos. Ou não é?

Não fica nisso. É preciso ampliar a lista maldita – eu ia escrever negra mas me contive a tempo, viu? – de preconceitos linguísticos. Febre amarela, por exemplo. O nome dessa doença devastadora é um ultraje a nossos irmãos do Extremo Oriente. Amarelar, no sentido de acovardar-se, também. E quanto a dizer que a empresa tal está indo para o vinagre porque suas contas estão no vermelho? Deve provocar arrepios de autoestima ultrajada em comanches e apaches, será possível que ninguém se dá conta?

O exercício pode ir longe. No entanto, antes de enquadrar na Lei Caó toda a paleta de cores que dá vivacidade a nossas conversas, que tal descer dois ou três degraus na escala da histeria e pensar um pouco sobre preto, sobre branco, sobre vermelho, sobre amarelo? Não só as pessoas, todo o mundo visível tem – pelo menos aos olhos humanos – cores, é bom não esquecer. Tão expressivas quanto outras palavras ligadas aos cinco sentidos, como frio e calor, silêncio e barulho, as cores são um código de comunicação poderoso, e não é de espantar que tenham vindo a designar raças e tons de pele apesar da evidente inadequação entre o branco e essas figuras avermelhadas, cinzentas, cerosas ou mesmo carameladas que andam por aí. Ou entre o negro e tantos matizes de marrom. Alguém devia ter reclamado antes: “Ei, eu não sou branco, sou bege!”. Agora é tarde, claro. Mas convém não esquecer que só metaforicamente é que as cores são cores de gente. E que sempre foram e sempre serão muito mais do que isso.

A ideia não é negar que a língua possa abrigar preconceitos. Abriga-os aos montes. Mas, assim como nem todo charuto é um símbolo fálico, será que quando dizemos que a coisa está preta não estamos nos referindo apenas à impossibilidade de enxergar uma saída, como ocorre no breu das noites fechadas? E por que não chamar de língua negra o despejo de esgoto na Praia do Pepino se aquele caldo hediondo é, caramba, definitivamente preto? Certo, nem sempre será clara a fronteira entre uma coincidência cromática e um insulto, mas acho que algum senso de ridículo é um bom começo. Só espero que o humor – às vezes negro, admito – desta crônica não tenha passado em branco.

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Tinha me esquecido quase completamente dessa crônica, que publiquei no extinto “Jornal do Brasil” há 13 anos (!), e mais tarde em meu livro “What língua is esta?” (Ediouro, 2005). Ontem, um debate sobre o “racismo” de expressões como “lista negra” e “a coisa está preta” esquentou a caixa de comentários de um conhecido meu no Facebook. Como estamos na temporada da proliferação de elefantes brancos, achei que seria oportuno trazer o texto de volta. Às vezes é difícil resistir à impressão de que as discussões que nos mobilizam patinam eternamente no mesmo lugar. Torço para ser só uma impressão.

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