A interminável breguice do juridiquês
Muitas vozes têm se erguido contra o estilo pernóstico, pomposo, preciosista e, vamos combinar, tantas vezes ridículo em que se expressam os ministros do Supremo Tribunal Federal. A tônica é que estamos desperdiçando uma chance de ouro, no julgamento do mensalão, de aproximar o público leigo da Justiça. “Por que perder a oportunidade sem precedentes […]
Muitas vozes têm se erguido contra o estilo pernóstico, pomposo, preciosista e, vamos combinar, tantas vezes ridículo em que se expressam os ministros do Supremo Tribunal Federal. A tônica é que estamos desperdiçando uma chance de ouro, no julgamento do mensalão, de aproximar o público leigo da Justiça. “Por que perder a oportunidade sem precedentes de mostrar aos nativos sem toga como funciona a Justiça em sua última instância, como são os homens que julgam sem direito a recurso, como se chega a uma decisão, de que modo nasce uma sentença?”, perguntava Augusto Nunes aqui ao lado, no último domingo. Na quinta-feira, o também vizinho Ricardo Setti lamentou que toda essa prosopopeia não permita que “o público não especializado entenda o que está se passando e, em bom grau, aprenda mais sobre o funcionamento do Supremo e da Justiça”.
Augusto e Setti são apenas duas vozes num coro sensato de jornalistas que vêm condenando o juridiquês. Uma tomada de posição dos ministros contra o uso abusivo da linguagem jurídica desnecessariamente empolada, velho vício da cultura bacharelesca no país de Odorico Paraguaçu, traria outro benefício: além de tornar a Justiça menos impenetrável para largas fatias da população, enviaria aos juízes de instâncias inferiores e a uma multidão de advogados um sinal de que já passou da hora de, para o bem do país, dar fim a essa breguice.
Jornalistas têm autoridade para pregar as vantagens da inteligibilidade: faz décadas que se curaram de seus próprios vícios bacharelescos, que enchiam os jornais até meados do século passado de palavras hoje proibidas como “nosocômio” e “indigitado”. No entanto, a causa não é exclusiva dessa categoria. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) lançou há sete anos uma campanha contra o juridiquês. Quando era ministro do STF, Nelson Jobim dirigiu um apelo aos colegas para reduzir “a liturgia da adverbiação” e adotar “o compromisso da substantivação”. O juiz federal Novély Villanova é autor do excelente “O que não deve ser dito”, coleção de recomendações preciosas – e bem-humoradas – a seus colegas sobre questões de língua. A substituição de “Pretório Excelso”, “Excelso Sodalício” ou “Egrégio Pretório Supremo” por “Supremo Tribunal Federal”, por exemplo. Ou a de “consorte supérstite” por “viúvo”. A lista é interminável.
Os esforços, como se vê, têm sido vãos.
Não se trata de negar que a Justiça, sendo ritualizada, precise de uma linguagem que em grande medida se baseia em fórmulas. Nem tudo, num processo, poderá ser expresso de forma cristalina para não iniciados. O problema é que a breguice do juridiquês vai muito além disso, transformando o estilo hermético em exercício clubístico de poder e intimidação, patoá destinado a mesmerizar as massas de um país semiletrado. A Igreja Católica usava expediente parecido no tempo das missas em latim, a diferença é que ela se abriu a ares mais democráticos nos anos 1960. A Justiça brasileira ainda aguarda seu Concílio Vaticano II.