A dúvida do ano: história x estória
No dia 27 de janeiro deste ano, respondendo à dúvida da revisora Licia Matos, leitora de carteirinha desta página, publiquei na seção Consultório um texto que, embora me parecesse interessante, jamais suspeitaria ter aspirações ao estrelato. Quanta gente, afinal, estaria interessada numa discussão meio erudita em torno da palavra “estória”, que alguns defendem, mas a […]

No dia 27 de janeiro deste ano, respondendo à dúvida da revisora Licia Matos, leitora de carteirinha desta página, publiquei na seção Consultório um texto que, embora me parecesse interessante, jamais suspeitaria ter aspirações ao estrelato. Quanta gente, afinal, estaria interessada numa discussão meio erudita em torno da palavra “estória”, que alguns defendem, mas a maioria nem usa? Pois para minha surpresa, mês a mês, graças sobretudo às ferramentas de busca, o post se manteve desde então entre os mais lidos do blog, a tal ponto que chega ao fim do ano como o campeão de acessos de 2011 – não só da seção Consultório, mas de todo o Sobre Palavras. O nome disso não é estória. É história mesmo.
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“Oi, Sérgio! Qual sua posição sobre o uso de história x estória? Sei que as duas palavras existem, o Volp aceita ambas igualmente, mas o Aurélio (de antes e depois da reforma) recomenda apenas o uso de ‘história’, tanto para ciência histórica quanto para ficção. Pesquisando na internet, nenhuma outra fonte faz essa recomendação. Trabalho como revisora e tive problemas com isso hoje.” (Licia Matos)
É muito interessante a questão trazida por Licia. Antes de mais nada, minha posição pessoal: nessa eu fico com o Aurélio e com os portugueses. Como quase todos os escritores de qualquer época que conheço, uso apenas história, acho mesmo que nunca escrevi a palavra estória até este exato momento – pelo menos não que me recorde. Por quê? Algo a ver com velhas recomendações de professores, provavelmente, mas nesse caso nunca vi motivos para me rebelar contra eles e abraçar esse brasileirismo de jeitão anglófilo. A verdade é que a fronteira entre história real (história) e história inventada (estória) me parece fluida demais para tornar funcional a adoção de dois vocábulos. Todo mundo sabe – ou deveria saber – que a história, bem espremida, é cheia de “estórias”. E vice-versa. Acho mais inteligente deixar a distinção a cargo do contexto.
Um dado curioso é que, contrariando o que muitos imaginam, estória não é exatamente um anglicismo recente (do século 20), mas uma palavra mais antiga em nosso idioma do que história – e, a princípio, com o mesmo significado. É o que informa o Houaiss: estória foi registrada em Portugal no século 13 e história, no 14. O melhor dicionário brasileiro acrescenta que, como sinônimo perfeito da segunda, a primeira caiu em desuso. Estória sobrevive hoje apenas como uma peculiaridade brasileira que significa “narrativa de cunho popular e tradicional”. O que me parece ao mesmo tempo vago e restritivo.
Na língua real, a acepção de “estória” acaba sendo mesmo a que aponta Licia: história fictícia, frequentemente mirabolante e inverossímil. Resta a questão de sua origem, que o Houaiss, embora situando o fato sete séculos antes do que acredita o senso comum, confirma ser o inglês story, também esta uma palavra do século 13. No entanto, acrescento eu, vale a pena considerar a hipótese de estória ter derivado – do mesmo modo que story, aliás – do francês arcaico storie, entre outras razões por sua razoável precedência: data de 1105.
Os adeptos do uso de “estória” me parecem francamente minoritários. De todo modo, depois que Guimarães Rosa usou a palavra no título de seu livro “Primeiras estórias”, de 1962 – cujo primeiro conto começa com a frase “Esta é a estória” – não se pode dizer que estejam desprovidos de credenciais literárias. No fim das contas, trata-se de mais um daqueles casos em que cada um deve decidir com a própria consciência e o próprio gosto seu caminho no mundo da língua.