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Sobre Palavras

Por Sérgio Rodrigues Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Este blog tira dúvidas dos leitores sobre o português falado no Brasil. Atualizado de segunda a sexta, foge do ranço professoral e persegue o equilíbrio entre o tradicional e o novo.

A dosimetria da pena e a gramatura do biscoito

“Uma coisa que incomoda é a expressão ‘dosimetria da pena’, repetidamente usada no STF e por comentaristas. O certo não seria ‘dosagem da pena’? Em Física, a palavra dosimetria refere-se à mensuração de doses (de radiação, por exemplo), não à especificação de uma dose a ser aplicada. Assim, não me parece certo o uso metafórico […]

Por Sérgio Rodrigues
Atualizado em 31 jul 2020, 07h33 - Publicado em 25 out 2012, 15h43

“Uma coisa que incomoda é a expressão ‘dosimetria da pena’, repetidamente usada no STF e por comentaristas. O certo não seria ‘dosagem da pena’? Em Física, a palavra dosimetria refere-se à mensuração de doses (de radiação, por exemplo), não à especificação de uma dose a ser aplicada. Assim, não me parece certo o uso metafórico que se tem feito da palavra ‘dosimetria’ para designar o ato de especificar a pena de um condenado.” (João Carlos Alves Barata)

O leitor João Carlos me pede que comente a palavra mais citada do país esta semana, tanto nos discursos dos ministros do Supremo Tribunal Federal (foto) quanto – de forma mais controversa, por se tratar de um fulgurante exemplar de juridiquês – na cobertura jornalística do julgamento do mensalão.

A palavra não consta de nenhum dicionário de português que eu conheça com o sentido de cálculo personalizado da pena de cada réu, processo que leva em conta agravantes e atenuantes individuais. Houaiss, Aurélio e o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa registram apenas o sentido altamente técnico que João Carlos cita: conjunto de técnicas para medição da dose de radiação a que um organismo foi exposto.

Isso basta para recomendar o uso de um termo mais compreensível – cálculo mesmo, por exemplo – por aqueles que precisam traduzir o patoá jurídico. Se dicionários não têm a obrigação de dar conta de jargões profissionais, que em muitos casos contam com seus próprios glossários, o grande público tem ainda menos.

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Este não chega a ser um caso grave porque dosimetria leva uma vantagem sobre outros vocábulos cabeludos do juridiquês: é relativamente transparente. Formada pela união do substantivo “dose” com o elemento de composição “metria”, não é difícil interpretar a palavra como “medição da dose”. Isto é, como um sinônimo metido a besta de dosagem ou doseamento.

De fato, a ideia por trás da dosimetria das penas é mais ou menos essa. Na sessão de quarta-feira, o revisor do processo do mensalão, Ricardo Lewandowski, afirmou que a linguagem jurídica tomou o termo emprestado da medicina. “É como se fosse a dose de um remédio”, disse. “Tem que seguir uma técnica, como aqueles farmacêuticos que aviam a receita.”

A metáfora, já se vê, remete à linguagem dos farmacêuticos e não à dos físicos. Um dos únicos grandes dicionários brasileiros (ao lado do Michaelis) a registrar tal acepção da palavra, o que talvez indique seu relativo desuso, afirma o Aulete que dosimetria é um “sistema terapêutico ou método farmacológico, que consiste em compor os medicamentos exclusivamente dos princípios ativos das substâncias medicamentosas em doses pequeníssimas, determinadas com todo o rigor, sob a forma de grânulos”.

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Mais uma vez, trata-se de um sentido específico e não de um sinônimo genérico de doseamento ou dosagem. Numa crônica de 1883, encontramos Machado de Assis a fazer troça da dosimetria, por ele chamada com ironia de “nova religião”, afirmando: “Se a dosimetria quer dizer que os remédios dados em doses exatas e puras curam melhor ou mais radicalmente, ou mais depressa, é, na verdade, grande crueza privar os restantes enfermos de tão excelso benefício”.

Seria descabido, evidentemente, receitar aqui um remédio que purificasse o juridiquês de seus vocábulos queridos. Jargão é jargão, e deve ser respeitado – ainda que traduzido em termos mais claros, sempre que possível, para o bem de todos e felicidade geral da nação. No entanto, é inevitável pensar que a consagração de uma expressão como “dosimetria da pena” em nossa cultura jurídica deve algo ao mesmo espírito pernóstico que vem tentando transformar na linguagem do marketing e da indústria um termo técnico de sentido preciso como gramatura (“peso do papel, referente a uma folha de um metro quadrado”) em sinônimo supostamente erudito de peso em geral. “Informamos que a gramatura do pacote de biscoito caiu de 300g para 250g”.

Seria bom que parássemos com isso. No caso da gramatura ainda dá tempo.

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