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Sobre Palavras

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Este blog tira dúvidas dos leitores sobre o português falado no Brasil. Atualizado de segunda a sexta, foge do ranço professoral e persegue o equilíbrio entre o tradicional e o novo.

‘No que cerne a…’: de onde saiu isso?

“Prezado Sérgio, Eventualmente, encontro livros e trabalhos acadêmicos em que o autor usa a expressão ‘no que cerne a…’ (no sentido de ‘no que diz respeito a’ ou ‘no que tange a’): ‘(…) é a variável estratégica no que cerne ao desenvolvimento da própria superestrutura de poder na China.’ ‘(…) tanto no que cerne à […]

Por Sérgio Rodrigues
Atualizado em 31 jul 2020, 04h12 - Publicado em 24 mar 2014, 15h50

“Prezado Sérgio,

Eventualmente, encontro livros e trabalhos acadêmicos em que o autor usa a expressão ‘no que cerne a…’ (no sentido de ‘no que diz respeito a’ ou ‘no que tange a’):

‘(…) é a variável estratégica no que cerne ao desenvolvimento da própria superestrutura de poder na China.’

‘(…) tanto no que cerne à transição econômica quanto (…)’

‘(…) no que cerne aos parâmetros de julgamento de uma propriedade rural (…).’

Procurei conhecer a origem/conjugação desse verbo, sobre o qual nunca ouvi falar. Em dicionários, existem os seguintes verbetes ‘mais próximos’, vamos dizer assim: cernar, ‘talhar até o cerne, limpar (madeira) da casca’, e cernir, ‘mover com requebros; peneirar’.

Como não vejo proximidade semântica da palavra utilizada no texto com esses verbetes, fiquei curioso sobre A PARTIR DE ONDE, COMO e EM QUE MOMENTO as pessoas passaram a utilizar esse misterioso verbo.

Meu palpite é o de que seja uma redução espontânea, realizada em algum momento, do verbo ‘concernir’, esse sim com sentido bem definido de ‘ter relação com’, ‘dizer respeito’, ‘referir-se’.

Ora, como tal conjugação verbal (‘cerne’) encontra-se literalmente dentro do étimo de concernir (‘concerne’), será que houve, morfologicamente, em algum momento desconhecido, uma redução de ‘concernir’ para ‘cernir’? Se houve, isso já foi elucidado em alguma obra de filologia, gramática ou linguística?

Agradeço qualquer esclarecimento e sugestão de obras que possam explicar esse caso aparentemente simples.” (Davi Miranda)

A consulta de Davi é daquelas, raríssimas, que já trazem sua própria resposta ponderada e praticamente irretocável. Sim, concordo: faz todo o sentido especular que esse uso estapafúrdio do verbo cernir em textos acadêmicos (e também jurídicos, acrescento eu) se deva a uma redução do verbo concernir. Quando, como e por que isso ocorreu eu não sei, nem conheço obra filológica que tenha se dedicado à questão. Dicionário algum que eu conheça, daqui ou d’além-mar, registra a novidade. Agradeço as contribuições que os leitores puderem dar a esse respeito.

Minha aposta é que a razão de tal mutação verbal tem menos a ver com criatividade linguística do que com ignorância mesmo (num primeiro momento) e imitação acrítica de cacoetes textuais supostamente eruditos (uma vez lançada a mania, vamos que vamos!). Ora, se a ignorância é inegavelmente um motor de mudanças na língua quando se trata do uso popular, nossa tolerância com ela deve ser bem menor em textos que empregam ou deveriam empregar a norma culta.

Resumindo: “No que cerne a…” não dá. Há ocasiões na história de uma língua em que o desvio, mesmo disseminado, não aponta para um futuro que o absolva: aponta apenas para o passado, com suas lições que deveríamos saber de cor e não sabemos. Hora de voltar três casas. Esta é uma dessas ocasiões.

O verbo latino cernere, “passar por crivo, distinguir”, é uma matriz fértil. Entre os muitos vocábulos de nossa língua que brotaram dessa fonte, o discernimento é um dos mais óbvios. O pouco usado verbo cernir, que carrega tanto o sentido de peneirar quanto, por extensão, o de rebolar, é outro. Já o verbo intransitivo concernir, do início do século XVII, que quer dizer “ter relação com, dizer respeito a”, guarda a peculiaridade de só ser conjugado nas terceiras pessoas (do singular e do plural): “No que concerne ao bom uso do idioma, o texto deixa a desejar”.

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Talvez se encontre aí outra pista para o uso emergente de cernir com o sentido de concernir: a influência do substantivo “cerne”, uma palavra etimologicamente desvinculada de cernere, mas cuja acepção de “parte central ou essencial, âmago” pode ter emprestado à forma conjugada “cerne” algum charme adicional pela via torta do equívoco.

*

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