Somos radicais ao não dialogar com radicais?
Num país de política tensionada e alto poder de influenciadores em redes propícias à radicalização, há saídas e instrumentos para restaurar o diálogo
“Não consigo. Não me peça para dialogar com certas pessoas. Em nome da minha saúde mental, eu as bloqueio.” Ouvi esse desabafo de uma escritora, feminista e influenciadora, reagindo a uma palestra que dei sobre um tema que parece improvável e repleto de limites e impossibilidades num país de política ainda muito tensionada — diálogo em tempos de radicalização.
Minha fala (e reações como a dela) se deu num workshop para influenciadores digitais, realizado há cerca de duas semanas pelo Redes Cordiais, organização de educação midiática que capacita comunicadores a combater a desinformação e o discurso de ódio nas redes sociais. Na plateia, 18 influenciadores que, somados, tinham até ali mais de 9 milhões de seguidores.
A queixa da escritora, exposta em tom de indignação, pôs o dedo em riste em direção a grupos e pessoas radicais da extrema direita. Como reagir e, sobretudo, dialogar — ela perguntou — a ataques machistas e misóginos contra mulheres, ataques racistas contra pessoas negras, ou ataques preconceituosos contra pessoas LGBTQIAP+? Para ela, está aí o seu limite: sem tolerância frente a intolerantes; sem diálogo. O limite da escritora é também o meu.
(Aos olhos de radicais machistas, misóginos, racistas e preconceituosos, porém, possivelmente ela e eu seremos vistos como radicais, e contra nós acende-se outra fogueira da interdição do diálogo.)
Uso tal exemplo para ilustrar a dificuldade corrente de muita gente de boa vontade quando se trata de política, polarização e diálogo em tempos de radicalização. No fundo, expressa um problema de entendimento sobre os riscos de um ambiente democrático contaminado — que a eleição do ano passado não resolveu — e a necessidade de redefinição dos papéis de comunicadores, em geral, e influenciadores digitais, em particular, para escalar ou reduzir conflitos num cenário de radicalização coletiva. Tarefas nada triviais.
No fim de junho, pesquisa Genial/Quest, feita com maiores de 16 anos, mostrou que a política fez 17% dos brasileiros cortarem relações pessoais em 2022. Destes, 1/3 considera impossível reatar amizade com pessoas que votaram no adversário de seus candidatos no segundo turno. E mais: 75% da população simplesmente não está arrependida de ter rompido essas relações. Dois terços das pessoas entrevistadas disseram considerar que o país está mais dividido neste momento, e 16% diz ter medo de falar de política no trabalho.
São efeitos de um ciclo doloroso que nos deixou em perigo. Em 2022 lidamos com o ápice do acirramento em alto grau da intolerância e da hostilidade entre grupos que pensam de modo diferente, com discursos perigosos de autoridades que estimularam e naturalizaram a violência, da incitação ao descumprimento de determinações e do próprio resultado eleitoral — um dos efeitos, sabemos, foi a tragédia do 8 de Janeiro.
Tudo isso interfere no modo como as pessoas participam da democracia; intimida eleitores, candidatos e candidatas, jornalistas, comunicadores e influenciadores; cria instabilidade e impulso do desejo por ordem e autoridade, favorecendo narrativas antidemocráticas; provoca empobrecimento do debate público, limitando a construção de consensos e barrando possibilidades de convivência entre diferentes; e gera ciclo de violência.
A eleição passou, mas os riscos continuam. E talvez o ponto mais importante é saber que defender o diálogo em meio a grandes diferenças, e oferecer instrumentos para tal, não significa dar voz e espaço a atores violentos, a fascismos e a atos e retóricas antidemocráticos. Dialogar, portanto, não significa tolerar a intolerância. Neste ponto, como a escritora cuja fala abriu esta coluna, somos todos radicais.
Ao mesmo tempo, porém, é o momento de trabalharmos pela redução dos extremos. Tirar os incentivos à radicalização e à extremização da política. Isso não significa produzir uma horta vasta de pessoas moderadas ou de centro. Longe disso. Antes, é fomentar um ambiente mais propício e fértil para diálogos democráticos. Aceitar diferenças, mesmo que realçando-as.
Influenciadores digitais são centrais nessa tarefa. “Por que não entender o fomento a um ambiente mais propício a diálogos democráticos como uma responsabilidade de influenciadores? Essa é uma influência positiva que precisamos ter no país”, diz a jornalista Clara Becker, diretora-executiva e cofundadora do Redes Cordiais. “Temos de influenciar os influenciadores, é um pouco do trabalho que temos tentado fazer, de modo que eles se tornem exemplos melhores e sejam inspirados a atuar de uma maneira mais saudável.”
A responsabilização cada vez maior pelo conteúdo que postam nas redes — o espaço mais fértil para a exposição dos nossos demônios internos — é um desejo, uma meta e uma necessidade. Para usar um só exemplo, dados do Instituto Reuters mostrou que influenciadores (incluindo celebridades e políticos) foram responsáveis pela disseminação de 20% de notícias falsas sobre a Covid-19 durante a pandemia. Esses 20%, porém, corresponderam a notáveis 70% do engajamento total nas redes sobre o tema.
Não à toa um país como a França acaba de aprovar uma lei para regulamentar práticas de influenciadores digitais, uma tentativa de conter a promoção de produtos e tendências perigosas na internet. A questão vai além da política, ou abarca a política como um todo — e não apenas partidária. Não permite, por exemplo, a promoção de remédios, produtos e procedimentos estéticos que trazem riscos à saúde. Proíbe a divulgação de criptoativos e aplicativos de apostas esportivas. Obriga que os influenciadores declarem se foram pagos para promover produtos, ou se vídeos e imagens foram retocadas ou, por exemplo, se um rosto foi criado ou alterado por inteligência artificial.
Para Clara Becker, a regulamentação é um bom caminho. “Acho ótimo que influenciadores possam ser vistos dessa forma, com todos os direitos e deveres que regem profissões, e que possamos institucionalizar esses novos atores do ecossistema informacional”, diz ela, ressaltando as cifras exorbitantes que hoje envolvem o marketing de influência e o poder dessa turma de ditar tendências, consumo e comportamentos.
Rafael Poço, um especialista na incorporação, pela política, de instrumentos da comunicação não-violenta, lista um conjunto de caminhos e possibilidades:
1. Desfaça estereótipos
2. Reconheça preocupações legítimas (o que não significa concordar com o outro lado)
3. Desgeneralize
4. Identifique seus próprios gatilhos e explore o poder de comunicação para reduzir hostilidades e moldar comportamentos positivos
5. Mude a dinâmica do confronto para a colaboração
6. Conte histórias pessoais e respeite a experiência do outro lado
7. Encoraje a busca de soluções, sem se concentrar exclusivamente no realce das diferenças
8. Evite parecer que a pessoa não tem saída se não aderir a algo que você pensa ou que já esteja definido
9. Divulgue com cautela falas prejudiciais ou perigosas proferidas por pessoas públicas
10. Tenha cuidado ao criar percepções públicas sobre determinado grupo ou situação
Sem esquecer aquela regra inicial: defina seu limite.