O que Mercadante e BNDES ensinam sobre a nova agenda nacional
Desfaça mitos, revise rótulos e preconceitos: o BNDES pode, sim, reiluminar o debate econômico e introduzir o Brasil na transição energética e digital
Quem assistiu à entrevista de Aloizio Mercadante ao programa Roda Viva, na noite desta segunda-feira, 15, viu no presidente do BNDES não só sua conhecida autoconfiança, mas o direcionamento nítido e bem formulado do que precisa ser um banco de desenvolvimento moderno e atualizado para o atual estágio econômico e social do Brasil.
Pela sua fala, mas também pelos primeiros movimentos que Mercadante e sua diretoria estão buscando promover, o BNDES pode retomar o papel que historicamente desempenhou: ser um farol de debate, formulação e participação em caminhos estratégicos do país, a partir de prioridades e decisões compatíveis com os desafios do momento – mesmo com uma trajetória de continuidade na lógica de sua atuação desde que o banco foi criado, na década de 1950.
Mas o fez com cara, enfim, de século 21. E isto hoje tem foco: transição energética, digital e tecnológica. Enfrentamento da crise climática conjugado com reindustrialização do Brasil e inserção competitiva do país no jogo global diante de novas políticas comerciais em curso, inclusive com a intensificação geopolítica entre Estados Unidos e China. O banco verde e digital é uma exigência de um novo consenso nacional em construção – um país igualmente verde e digital, menos desigual e mais inclusivo.
Antes que as gralhas gritem, não se trata tão-somente de uma peça narrativa do presidente do BNDES, num programa elegantemente conduzido pela jornalista Vera Magalhães, crítica habitual do convidado e do PT. É uma necessidade do país e parte de um debate internacional amplo, que fizeram caducar rótulos antigos que não mais dão conta dos desafios do momento. Esqueçam, portanto, simplificações que costumam resumir visões distintas, como desenvolvimentismo, neoliberalismo, globalismo, keynesianismo, ortodoxia/heterodoxia e congêneres.
O mesmo país que ainda vê parte de sua elite financista e política torcendo o nariz para um banco de desenvolvimento como o BNDES foi aquele que viveu a desindustrialização mais abrangente e prematura de sua história. Depois de responder por quase metade da produção nacional em meados da década de 1980, o setor industrial terminou o ano de 2021 com apenas 11% de participação do PIB, praticamente o mesmo patamar de 1947 (!), e com uma crise de emprego crônica e histórica.
A culpa é múltipla: erros da própria indústria, elevados custos sistêmicos, sistema tributário complexo e oneroso, infraestrutura deficiente, financiamento escasso e caro, insegurança jurídica e escolhas governamentais questionáveis de privilégios com subsídios setoriais e renúncias fiscais não sustentáveis ao longo do tempo – incluindo excessos de governos petistas.
O fato é que, noves fora o excesso de temas a que Mercadante foi chamado a comentar – do previsível tema dos juros ao arcabouço fiscal, das relações do governo com o Congresso ao Gabinete de Segurança Institucional –, se sobressaem alguns dados, direcionamentos e combate a alguns mitos em torno do banco:
1. A tentativa de reverter a atual lógica de pagamentos de dividendos do banco ao Tesouro. Desde 2019 o BNDES passou a ser obrigado a pagar 60% do seu lucro ao Tesouro, como dividendos ao seu único acionista (era 25% quando a regra foi instituída no governo de Michel Temer). É dinheiro que tira da economia, ou freia desembolsos de investimento, para fazer caixa. Como disse Mercadante, o banco “virou instrumento parafiscal de tirar recursos da economia e financiar o Tesouro”. Nem tanto ao céu nem tanto ao mar: a atual gestão pleiteia pelo menos retomar o patamar dos 25%, abrindo-lhe mais recursos para financiar projetos.
2. Subsídio, o palavrão preferido pelos críticos quando se referem ao BNDES, representa uma fração dos financiamentos concedidos pelo banco. Ainda assim, Mercadante demonstrou o quanto as políticas industriais e comerciais de outros países são adotadas com base em subsídios. Não é jabuticaba brasileira, portanto. Dos EUA à China, passando pela União Europeia, há escolhas em curso com base em subsídios destinados a estimular energia limpa e transição verde, diversificação econômica e ênfase em inovação. Quem achar que é autodefesa do presidente do banco deveria ler os mais recentes artigos de Dani Rodrik, professor de Harvard e retomado defensor de políticas industriais que tem pregado o abandono de subsídios e foco a empresas médias e pequenas para gerar empregos no setor de serviços.
3. É má-fé debitar na conta dos “juros subsidiados do BNDES” a dificuldade da política monetária de reduzir a Selic. Num sistema financeiro que desembolsa mais de R$ 4 trilhões, pouco menos de R$ 100 bilhões foram desembolsados pelo banco. “E é o BNDES que vai interferir na política monetária?”, questionou com Mercadante, com razão. Paciência.
4. Além de anunciar que o BNDES vai lançar este mês a ampliação do subsídio para a agricultura e uma linha de financiamento para a indústria, com foco em exportação e indústria exportadora, ele mencionou o acordo engenhoso com a Petrobras, de converter dividendos em apoio à necessária transição energética que a petroleira precisa promover nos próximos anos.
5. O banco como espaço fértil de discussão, formulação e, por que não, tensionamento do debate. Está na origem do debate econômico brasileiro. Da calorosa disputa representada pelo industrial Roberto Simonsen e pelo liberal Eugênio Gudin nos anos 1940 às tensões entre tucanos José Serra, Luiz Carlos Mendonça de Barros e André Lara Resende, de um lado, e Pedro Malan e Gustavo Franco, de outro. Dos embates da dupla Roberto Campos-Delfim Netto durante o regime militar à disputa de modelos, no mesmo período, entre o saudoso João Paulo dos Reis Velloso contra Mario Henrique Simonsen.
Mercadante foi cuidadoso ao falar sobre os planos do governo para o setor automotivo. Apesar de toda a defesa que fez sobre o impacto positivo na cadeia produtiva, deve saber que é um vespeiro com cheiro de gasolina adulterada, caso Lula embarque no modelo antigo de incentivos ao setor – que inclui pressão das montadoras para renovação da frota, incentivos tributários e até mesmo a volta do carro popular. O presidente do BNDES tocou no ponto certo: a ênfase a carros híbridos, atualização tecnológica e eficiência ambiental.
Os excessos fiscais promovidos no segundo governo Lula e no primeiro governo Dilma ajudaram a pavimentar o caminho para ataques sistemáticos ao banco. Uma das críticas sugeria que o banco estaria a serviço de interesses ideológicos do governo de ocasião. O ex-presidente Jair Bolsonaro passou anos falando que abriria uma tal caixa-preta que, no fim das contas, maculou indevidamente a imagem do banco e do BNDESPar (sua subsidiária de participações acionárias, uma operação bem-sucedida). Não havia caixa-preta.
Um dos equívocos da simplificação desse debate foi ignorar padrões de continuidade na atuação do banco desde a sua criação. A despeito disso, no entanto, o banco sempre esteve a serviço da estratégia do país em dado momento, a partir das prioridades definidas pelo governo de ocasião.
Nos anos 1950, tornou-se um agente importante de financiamento da infraestrutura de energia e transporte e da siderurgia. Nos anos 1960, indústrias de base, bens de consumo, estímulo a pequenas e médias empresas e desenvolvimento tecnológico. Tornou-se responsável pelo amadurecimento da indústria de bens de capital nos anos 1970. Agiu para salvar diversas empresas na ruidosa crise dos anos 1980. Exerceu papel crucial no processo de privatização na década de 1990, operacionalizando e financiando a compra de empresas estatais por grupos privados. Foi chamado a exercer um importante papel anticíclico na crise de 2008 e 2009.
Ou seja, o BNDES acompanhou todos os movimentos e estratégias definidas pelo país ao longo de sua história nas últimas décadas.
A entrevista de Mercadante ajuda a mapear as agendas relevantes desse nosso tempo.